Foi precisa mais uma semana de convalescença para que Aspinella juntasse todas as peças. Fôra uma armadilha. E o único tipo que podia tê-la montado era Heskow. E o fato de faltarem quarenta mil dólares no saco significava que aquele porco ganancioso não resistira a roubar a sua própria gente. Bom, ela havia de pôr-se boa, pensou, e então voltaria a ter uma conversa com o sr. Heskow.
Capítulo 10
Astorre passou a ser extremamente cuidadoso nos seus movimentos, não só para evitar um ataque, mas também para não dar motivo a que o prendessem fosse por que motivo fosse. Mantinha-se sempre perto de casa, guardada vinte e quatro horas por dia por equipes de cinco homens. Mandara colocar sensores no bosque e nos terrenos circundantes, e luzes infravermelhas para vigilância noturna. Quando se arriscava a sair, era com seis guarda-costas, divididos em três equipes de dois. Por vezes viajava sozinho, confiando no segredo e na surpresa e nas suas próprias capacidades se encontrasse apenas um ou dois assassinos. O ataque contra os dois detetives fôra necessário, mas provocara uma pressão enorme. E quando Aspinella Washington recuperasse, aperceber-se-ia imediatamente de que fora Heskow quem a traíra. E se Heskow falasse, Aspinella não hesitaria em ir atrás dele.
Tinha perfeita consciência da enormidade do seu problema. Conhecia os nomes de todos os homens responsáveis pela morte do Don e sabia as dificuldades que teria de vencer. Havia Kurt Cilke, essencialmente intocável; Timmona Portella, que ordenara o assassínio; e também Inzio Tulippa, Grazziella e o cônsul-geral do Peru. Os únicos que conseguira punir tinham sido os irmãos Sturzo, e esses não passavam de simples peões naquele jogo.
Toda a informação viera de Heskow, o sr. Pryor, Don Craxxi e Octavius Bianco, na Sicília. Teria de reunir todos os seus inimigos no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Apanhá-los um a um seria seguramente impossível. E tanto o sr. Pryor como Craxxi o tinham avisado repetidamente de que não podia tocar em Cilke.
E depois, havia o cônsul-geral do Peru, Marriano Rubio, companheiro de Nicole. Até que ponto ia a lealdade dela para com ele? O que fôra que Nicole riscara no dossiê do FBI para que ele não o visse? Que estaria a querer esconder-lhe?
Nos seus escassos momentos de calma, sonhava com as mulheres que amara. Primeiro fôra Nicole, tão jovem e tão voluntariosa, com o seu corpo pequeno, tão delicado, tão apaixonada que o forçara praticamente a amá-la. E como agora estava mudada, com toda a sua paixão voltada para a política e para a carreira.
Recordou Buji na Sicília, não exatamente uma prostituta, mas muito perto disso, e no entanto uma deusa impulsiva que podia tão facilmente transformar-se numa fúria. Lembrava-se do maravilhoso corpo dela, das suaves noites sicilianas, quando nadavam e comiam azeitonas de barricas cheias de azeite. Sobretudo, recordava com especial carinho o fato de ela nunca mentir; era totalmente franca a respeito da sua vida, dos outros homens. E a lealdade que demonstrara quando ele fôra ferido, o modo como o arrastara para a areia, com o sangue dele a manchar-lhe o corpo. E a oferta da gargantilha de ouro com a sua medalha, para esconder a feia cicatriz da bala.
Então pensava em Rosie, a mentirosa Rosie, tão meiga, tão bonita, tão sentimental, que protestava veementemente o seu amor ao mesmo tempo que o traía. Mas que sabia sempre fazê-lo feliz quando estavam juntos. Quisera destruir o que sentia por ela usando-a contra os irmãos Sturzo, e ficara surpreendido ao descobrir como ela gostava do papel, como o ajustava à sua vida de faz-de-conta.
E então, insinuando-se-lhe no espírito como um fantasma, surgia a visão da mulher de Cilke, Georgette. Que estupidez. Passara uma noite a observá-la, a ouvi-la falar de coisas que considerava disparates, em que não acreditava, como a preciosidade de cada alma humana. E, no entanto, não conseguia esquecê-la. Como diabo teria ela casado com um tipo como Kurt Cilke?
Por vezes, à noite, ia até ao bairro de Rosie e ligava-lhe do telefone do carro. Ela estava sempre livre. Isto surpreendeu-o, mas Rosie explicou-lhe que andava tão ocupada a estudar que nem tempo tinha para sair. O que lhe convinha perfeitamente, uma vez que seria demasiado perigoso levá-la a um restaurante ou ir ao cinema. Em vez disso, parava no Zabar's, no East Side, e comprava-lhe iguarias que a faziam sorrir de prazer. Entretanto, Monza esperava no carro.
Rosie punha a comida na mesa e abria uma garrafa de vinho. Enquanto comiam, pousava-lhe as pernas no colo num gesto de camaradagem, e o seu rosto brilhava de felicidade por estar com ele. Parecia acolher cada uma das suas palavras com um sorriso encantado. Era o seu dom, e Astorre sabia que ela era assim com todos os homens. Mas não se importava.
E quando iam para a cama, ela era apaixonada, mas também muito terna e possessiva. Estava sempre a tocar-lhe no rosto, e a beijá-lo, e a dizer: ― Somos verdadeiramente almas gémeas.
E estas palavras punham um frio no coração de Astorre. Não queria que ela fosse a alma gêmea de um homem como ele. Nesses momentos, ansiava pela virtude clássica, mas não conseguia deixar de continuar a procurá-la.
Ficava quatro ou cinco horas. Às três da manhã, ia-se embora. Por vezes, quando ela estava a dormir, tardava-se uns instantes a olhá-la, e via no relaxamento dos seus músculos faciais uma triste vulnerabilidade e uma luta, como se os demônios que escondia nos recônditos mais íntimos de si mesma quisessem libertar-se.
Certa noite, saiu mais cedo de uma destas visitas a Rosie. Quando chegou ao carro, Monza disse-lhe que tinha uma mensagem urgente para telefonar a um tal sr. Juice. Era o nome de código que ele e Heskow usavam, de modo que pegou imediatamente no telefone do carro.
A voz de Heskow soou com uma nota de premência.
― Não poso falar pelo telefone ― disse. ― Temos de encontrar-nos imediatamente.
― Onde?
― Vou estar à porta do Madison Square Garden. Apanhe-me de passagem. Dentro de uma hora.
Quando passou pelo Garden, Astorre viu Heskow no passeio. Monza parou o carro diante dele, com a arma pousada no colo. Astorre abriu a porta e Heskow saltou para o banco da frente. O frio pusera-lhe manchas de umidade na cara
― Tem um sarilho dos grandes ― disse.
Astorre sentiu o gelo descer-lhe pela espinha. ― Os filhos? ― perguntou.
Heskow assentiu.
― O Portella apanhou o seu primo Marcantonio e tem-no escondido algures. Não sei onde. Amanhã vai convidá-lo para um encontro. Quer trocar qualquer coisa pelo refém. Mas se a coisa não correr bem, tem uma equipe de quatro atiradores pronta para si. Vai usar os seus próprios homens. Tentou passar-me o serviço, mas eu recusei.
Estavam numa rua escura.
― Obrigado ― disse Astorre. ― Onde é que posso deixá-lo?
― Aqui mesmo. O meu carro está a um quarteirão de distância. Astorre compreendeu. Heskow tinha medo de ser visto com ele.
― Mais uma coisa ― acrescentou Heskow. ― Sabe da suite do Portella no hotel privado? O irmão dele, o Bruno, está a usá-la esta noite com uma gaja qualquer. Sem guarda-costas.
― Mais uma vez obrigado ― disse Astorre. Abriu a porta do carro e Heskow desapareceu na escuridão.
Marcantonio Aprile estava na sua última reunião do dia, e queria torná-la o mais curta possível. Eram sete da tarde e tinha um compromisso para jantar às nove.
A reunião era com o seu produtor preferido e melhor amigo na indústria do cinema, um homem chamado Steve Brody, que nunca ultrapassava os orçamentos, tinha um faro incrível para histórias dramáticas e muitas vezes lhe apresentava jovens atrizes prometedoras que precisavam de um pequeno empurrão nas suas carreiras.