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― É um homem muito esperto ― disse-lhe.

Heskow corou de prazer.

― Eu sei ― respondeu. ― É assim que me mantenho vivo.

No dia seguinte, às onze da manhã, Astorre chegou à delegação do FBI acompanhado por Nicole Aprile, que arranjara o encontro.

Passara a noite inteira a ponderar o que devia fazer. Planeara tudo aquilo para conseguir que Portella matasse Cilke. Mas sabia que não podia deixar que Georgette e a filha fossem igualmente mortas. Também sabia que Don Aprile nunca teria interferido com o destino numa situação daquelas. Mas então recordara uma história a respeito do Don que o fizera pensar.

Certa noite; quando tinha doze anos e estava na Sicília com o Don durante a sua visita anual, Caterina servira-lhes o jantar no pavilhão do jardim. Astorre, com a inocência que o caracterizava, perguntara subitamente:

― Como foi que vocês os dois se conheceram? Cresceram juntos quando eram crianças?

O Don e Caterina trocaram um olhar e riram-se daquela curiosidade. Então o Don levara um dedo aos lábios e murmurara, com um ar muito sério:

― Omertà. É segredo.

Caterina, pelo seu lado, batera-lhe ligeiramente na mão com a colher de madeira com que mexia a salada.

― Não tem nada com isso, seu diabrete ― dissera. ― E, além disso, não é coisa de que me orgulhe.

Don Aprile olhara para ele com ternura.

― Por que é que não há de saber? É siciliano até à medula. Conta-lhe.

― Não ― dissera Caterina. ― Mas podes contar-lhe tu , se quiseres.

Depois do jantar, Don Aprile acendera o seu charuto, enchera o seu copo de anisette e contara-lhe a história.

― Há dez anos, o homem mais importante da cidade era um tal Padre Sigusmundo, um indivíduo muito perigoso, mas apesar disso bem-humorado. Quando eu vinha à Sicília, ia muitas vezes a minha casa, jogar cartas com os meus amigos. Nessa altura, eu tinha uma outra governanta.

― O Padre Sigusmundo não era, porém, um homem sem religião. Pelo contrário, era um sacerdote devoto e trabalhador. Certa vez, envolvera-se inclusivamente numa cena de pugilato com um exasperante ateu. Era famoso sobretudo por ministrar os últimos sacramentos às vítimas da Máfia no próprio momento em que entregavam a alma ao Criador, absolvendo-as e preparando-as para a viagem até ao Paraíso. Embora todos o reverenciassem por isto, a verdade é que a circunstância se repetiu com tanta freqüência que as pessoas começaram a murmurar que a razão por que se encontrava tantas vezes presente era ser ele próprio um dos executores. Além disso, acusavam-no de trair o segredo do confessionário para servir os seus interesses.

― O marido de Caterina na altura era um polícia que combatia a Máfia por todos os meios ao seu alcance. Chegara inclusivamente a insistir na investigação de um caso de assassínio depois de ter sido avisado pelo chefe provincial da Máfia, um ato de desafio inaudito naqueles tempos. Uma semana mais tarde, caíra numa emboscada e tombara crivado de balas numa ruela de Palermo. Por uma feliz coincidência, o Padre Sigusmundo estava presente para lhe ministrar os últimos sacramentos. O crime nunca fôra solucionado.

― Caterina, a inconsolável viúva, passara uma ano de luto e de devoção à igreja. Então, num sábado, fôra confessar-se ao Padre Sigusmundo. E quando ele saíra do confessionário, ela, à frente de toda a gente, trespassara-lhe o coração com a adaga do marido.

A polícia atirara-a para a prisão, mas isso era o menos. O chefe da Máfia pronunciara uma sentença de morte contra ela.

Astorre ficara a olhar para Caterina de olhos muito abertos. ― Fizeste mesmo isso, tia Caterina? ― perguntara.

Caterina olhara para ele, divertida. O garoto estava cheio de curiosidade, mas nem uma ponta de medo.

― Tens de compreender porquê ― dissera. ― Não foi por ele ter morto o meu marido. Os homens passam o tempo a matar-se uns aos outros, aqui na Sicília. Mas o Padre Sigusmundo era um falso padre, um assassino impenitente. Não tinha legitimidade para ministrar os últimos sacramentos. Por que haveria Deus de dar-lhe ouvidos? Por isso o meu marido não só tinha sido assassinado, como vira ser-lhe recusada a entrada no Céu, e tivera de descer ao inferno. Os homens não sabem quando devem parar. Há coisas que não se fazem. Foi por isso que matei o padre.

― Então como é que está aqui? ― inquirira Astorre.

― Porque Don Aprile se interessou pelo caso ― respondera Caterina. ― Por isso, naturalmente, tudo se resolveu.

O Don olhara gravemente para ele.

― Tinha uma certa posição na cidade, um respeito. As autoridades eram fáceis de contentar, e a Igreja não queria chamar a atenção pública para um padre corrupto. O chefe da Máfia não foi tão compreensivo e recusou-se a levantar a sentença de morte. Encontraram-no no cemitério onde estava enterrado o marido da Caterina, com a garganta cortada, e a sua cosca foi aniquilada. Entretanto, eu tinha-me tornado amigo de Caterina, e fi-la governanta desta casa. E desde há nove anos, os meus verões na Sicília têm sido os mais doces da minha vida.

Para Astorre, tudo aquilo era magia. Comera um punhado de azeitonas e cuspira os caroços.

― A Caterina é a sua namorada? ― perguntara.

― Claro que sou ― respondera ela. ― És um rapaz com doze anos, já compreendes estas coisas. Vivo sobre a proteção do teu tio como se fosse sua mulher, e cumpro todos os meus deveres de esposa.

Don Aprile parecera ligeiramente embaraçado, a única vez que Astorre o vira assim.

― Então por que é que não casam? ― perguntara.

― Nunca poderia deixar a Sicília ― explicara Caterina. ― Aqui vivo como uma rainha, e o teu tio é generoso. Tenho aqui os meus amigos, as minhas irmãs e irmãos e primos. E o teu tio não pode viver na Sicília, Por isso fazemos o melhor que podemos.

― Tio, pode casar com a Caterina e viver aqui ― dissera então Astorre ao Don. ― Eu fico com vocês. Não quero deixar a Sicília, nunca. Tinham ambos rido ao ouvir isto.

― Escuta-me ― dissera o Dom ― Foi muito difícil travar a vendetta contra ela. Se casássemos, haviam de nascer por todo o lado conjuras e más vontades. Esta gente aceita o fato de ela ser minha amante, mas não minha mulher. Portanto, desta maneira, estamos ambos contentes e felizes. Além disso, não quero uma mulher que não aceite as minhas decisões, e por isso, quando ela se recusar deixar a Sicília, eu não serei um marido.

― E seria uma infâmia ― murmurara Caterina. Inclinara ligeiramente a cabeça, e então voltara os olhos para o negro céu siciliano e começara a chorar.

Astorre ficara perturbado. Nada daquilo fazia sentido para ele. ― Mas porquê? ― insistira.

Don Aprile suspirara. Puxara uma baforada do charuto e bebera um gole de anisette.

― Tens de compreender ― dissera. ― O Padre Sigusmundo era meu irmão.

Astorre recordou agora que a explicação deles não o convencera. Com a voluntariedade de um romântico rapazinho de doze anos, acreditava que a duas pessoas que se amavam uma à outra tudo era permitido. Só agora compreendia a terrível decisão que o tio e a tia tinham tomado. Se o Don casasse com Caterina, todos os seus próprios familiares de sangue se teriam tornado seus inimigos. Não que não soubessem que o Padre Sigusmundo era um patife. Mas era um irmão, e isso desculpava todos os pecados. E um homem como o Don não podia casar com a assassina do irmão. Caterina não podia pedir-lhe um tal sacrifício. E se Caterina acreditasse que o Don estivera de algum modo implicado na morte do marido? Que coragem a dos dois e, talvez, que traição de tudo aquilo em que acreditavam.