Ali, no entanto, era a América, não a Sicília. Durante a longa noite, Astorre tomara a sua decisão. De manhã, telefonara a Nicole.
― Vou buscar-te para tomarmos café ― disse. ― Depois vamos os dois visitar o Cilke na sede do FBI.
― Tem de ser uma coisa séria, certo? ― disse Nicole.
― Claro. Conto os detalhes no café.
― Tens reunião marcada com ele?
― Não, essa é a tua parte.
Uma hora mais tarde, os dois primos estavam a tomar café salão de um hotel de luxo, numa mesa o mais isolada possível, pois o lugar era um ponto de encontro muito usado por executivos e homens de negócios.
Nicole acreditava nas vantagens de um café da manhã generoso; sabia que precisava de combustível para agüentar os seus dias de trabalho de doze horas. Astorre pediu um suco de laranja e café, o que, juntamente com uma cesta de pãezinhos, lhe custou vinte dólares.
― Que gatunos ― disse a Nicole, com um sorriso.
O comentário irritou-a.
― Estás a pagar o ambiente ― resmungou. ― As toalhas de linho, a louça importada. Que diabo se passa agora?
― Vou cumprir o meu dever cívico ― respondeu Astorre. ― Tenho informações, de fonte absolutamente fidedigna, de que Kurt Cilke e a família serão mortos amanhã à noite. Quero avisá-lo. Quero tirar vantagens do fato de tê-lo avisado. Mas ele vai querer saber qual foi a minha fonte, e isso não vou poder dizer-lhe.
Nicole empurrou o prato e recostou-se na cadeira.
― Quem raio é assim tão estúpido? ― disse. ― Jesus, espero que não estejas envolvido.
― O que te leva a pensar isso? ― perguntou Astorre.
― Não sei. Foi uma idéia que me ocorreu. Por que não o avisas anonimamente?
― Quero os louros das minhas boas ações. Tenho a sensação de que atualmente ninguém gosta de mim ― respondeu ele, sorrindo.
― Eu gosto de ti ― disse Nicole, inclinando-se para a frente. ― OK, a nossa história é a seguinte. Quando vínhamos a entrar no hotel, um desconhecido chegou-se a nós e murmurou-te a informação ao ouvido. Vestia um terno de listras cinzentas, camisa branca e gravata preta. Era de estatura média, moreno, podia ser italiano ou hispânico. A partir daqui, podemos diferir. Eu confirmarei a tua história, e ele sabe bem que não se brinca comigo.
Astorre riu-se; o riso dele era sempre desarmante; tinha a alegria despreocupada do de uma riança.
― Tem então mais medo de ti do que de mim ― disse.
Nicole sorriu. ― Conheço o diretor do FBi. É um animal político. Tem mesmo de ser. Vou telefonar ao Cilke e dizer-lhe que espere a nossa visita. ― Tirou o telefone da bolsa e fez a chamada. ― Sr. Cilke, fala Nicole Aprile. Estou com o meu primo, Astorre Viola, e ele tem uma informação importante para lhe comunicar. ― Depois de uma pausa, continuou: Isso é demasiado tarde. Estamos aí dentro de uma hora. ― E desligou antes que Cilke pudesse dizer fosse o que fosse.
Uma hora mais tarde, Nicole e Astorre eram introduzidos no gabinete de Kurt Cilke. Um amplo gabinete de esquina, com janelas de vidro polarizado à prova de bala através dos quais nada se via, pelo que não havia vista.
Cilke, de pé atrás de uma grande secretária, esperava por eles. Diante da secretária, havia três cadeiras de couro preto. A parede por detrás de Cilke era estranhamente ocupada por um quadro negro, como os das escolas. Numa das cadeiras sentava-se Bill Boxton, que não se ofereceu para apertar-lhes a mão.
― Vai gravar isto? ― quis saber Nicole.
― Claro ― respondeu Cilke.
― Que diabo, gravamos tudo, até quando pedimos café e donuts ― disse Boxton, tranqüilizadoramente. ― Também gravamos qualquer pessoa que pensemos que vamos ter de mandar para a prisão.
― Você é um merda a armar-se em engraçadinho ― atirou-lhe Nicole, impassível. ― Nem no seu melhor dia conseguiria mandar-me para a prisão. Pense outra vez. O meu cliente, Astorre Viola, veio aqui voluntariamente, com a intenção de lhes fornecer uma informação importante. Eu estou aqui para o proteger de qualquer tipo de abuso depois de o ter feito.
Kurt Cilke não foi tão encantador como tinha sido nos seus encontros anteriores. Fez-lhes sinal para que se sentassem e ocupou a sua própria cadeira atrás da secretária.
― OK. ― disse. ― Venha lá isso.
Astorre sentiu a hostilidade do homem, como se o fato de estar a jogar em casa o dispensasse de mostrar a habitual afabilidade de circunstância. Como iria reagir? Olhou-o diretamente nos olhos e disse:
― Recebi a informação de que vai haver um forte ataque armado à sua casa, amanhã à noite. Tarde. O objetivo é matá-lo, por qualquer razão que desconheço.
Cilke não respondeu. Ficou petrificado na cadeira, mas Boxton saltou do seu lugar e ficou de pé junto de Astorre.
― Kurt, tem calma ― disse, dirigindo-se a Cilke.
Cilke pôs-se de pé. Todo o seu corpo pareceu explodir de raiva.
― É um velho truque da Máfia ― declarou. ― Ele é que prepara a operação, e depois sabota-a. E pensa que eu vou ficar-lhe agradecido. Ora diga-me, onde diabo obteve essa informação?
Astorre contou-lhe a história que ele e Nicole tinham preparado.
Cilke voltou-se para Nicole e perguntou: ― Assistiu a este incidente?
― Sim, mas não ouvi o que o homem disse.
― Considere-se detido ― disse Cilke a Astorre.
― Por que motivo? ― inquiriu Nicole.
― Por ameaçar um agente federal.
― Acho que é melhor telefonar ao seu diretor ― disse Nicole.
― A decisão compete-me.
Nicole consultou o relógio.
― Nos termos de uma ordem executiva do presidente ― declarou Cilke, suavemente ― estou autorizado a detê-la a si e ao seu cliente, sem apoio legal, durante quarenta e oito horas, como ameaça à segurança nacional.
Astorre teve um sobressalto. Voltou-se para Nicole, com uma expressão de espanto quase infantil, e perguntou: ― É verdade? Ele pode mesmo fazê-lo? ― Estava verdadeiramente impressionado por tamanho poder. ― Eh, isto está a parecer-se cada vez mais com a Sicília ― acrescentou, jovialmente.
― Se tomar essa medida, o FBI vai passar os próximos dez anos no tribunal, e você passa à história ― ameaçou Nicole, com toda a calma. ― Tem tempo para afastar a sua família e emboscar os atacantes. Não saberão que foram denunciados. Se capturar algum, poderá interrogá-lo. Nós não falaremos. Não os avisaremos.
Cilke pareceu ponderar isto. Dirigiu-se a Astorre, com desprezo: ― Pelo menos, respeitava o seu tio. Ele nunca teria falado.
Astorre lançou-lhe um sorriso embaraçado.
― Outros tempos, outras terras. E além disso, você não é assim tão diferente, com as suas ordens executivas secretas.
Perguntou a si mesmo o que diria Cilke se lhe explicasse que estava a salvá-lo apenas porque passara algumas horas a conversar com a mulher dele e se apaixonara romântica e tolamente pela idéia que fazia dela.
― Não acredito na sua história, mas trataremos disso se houver realmente um ataque amanhã à noite. Se acontecer alguma coisa, prendo-o, e talvez também a si, senhora doutora advogada. ― Mas por que me avisou?