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Uma outra lenda era arrepiante devido à sua ambigüidade, como esses contos de bruxas e fantasmas para crianças. Na altura em que os três filhos do Don freqüentavam colégios internos, um empreendedor e talentoso jornalista, conhecido pela verve com que expunha as fraquezas dos ricos e famosos, descobriu-lhes o rasto e conseguiu convencê-los a uma aparentemente inofensiva troca de palavras. O plumitivo achou imensa graça à inocência dos três jovens, às suas belas roupas, ao idealismo juvenil com que falavam de tornar o mundo um lugar melhor. E comparava tudo isto com a reputação do pai, admitindo embora que Don Aprile nunca fora condenado por qualquer crime.

A peça tornou-se famosa, circulando por redações de todo o país ainda antes de ser publicada. Era o gênero de êxito com que os escritores sonham. Toda a gente gostou imenso.

O jornalista era um amante da natureza, e todos os anos ia, com a mulher e os dois filhos, passar alguns dias numa cabana que tinha no Norte do estado de Nova Iorque, para caçar e fazer uma vida simples. Era lá que estavam num longo fim-de-semana que coincidiu com o feriado do dia de Ação de Graças. No sábado, a cabana, situada a mais de quinze quilômetros da povoação mais próxima, incendiou-se. Os primeiros socorros só chegaram passadas duas horas. Por essa altura, tudo o que restava da cabana era um monte de troncos calcinados, e dos seus ocupantes os corpos praticamente reduzidos a cinzas. O escândalo foi enorme e as autoridades lançaram uma investigação maciça, mas não foi possível encontrar qualquer prova de ação criminosa. A conclusão foi que a família sucumbira sufocada pelo fogo antes de conseguir sair.

Aconteceu então uma coisa engraçada. Poucos meses depois da tragédia, começaram a circular certos rumores e boatos. Ao FBI, à polícia e à imprensa chegaram inúmeras informações anônimas. Todas elas sugeriam que o incêndio fora um ato de vingança do infame Don Aprile. Os jornais, sedentos de uma história, exigiram que o caso fosse reaberto. Foi, mas mais uma vez não houve acusação. E no entanto, apesar da ausência de qualquer prova, também este caso se tornou uma lenda sobre a ferocidade do Don.

Só junto do grande público, porém; as autoridades estavam convencidas de que, na circunstância, nada havia a censurar a Don Aprile. Toda a gente sabia que os jornalistas estavam isentos de toda a retaliação. Seria preciso matar milhares, portanto qual era a vantagem? O Don era demasiado inteligente para correr semelhante risco. Em todo o caso, a lenda nunca morreu. Alguns agentes do FBI pensavam inclusivamente que tinha sido o próprio Don a espalhar os boatos, com o intuito de criá-la. E assim cresceu.

Don Aprile tinha, no entanto, uma outra faceta: a sua generosidade. Quem o servisse lealmente enriquecia e podia contar com um poderoso protetor em tempos de adversidade. As recompensas que o Don dispensava eram enormes, os castigos que decretava definitivos. Era esta a sua lenda.

Depois aos seus encontros com Portella e Cilke, Dom Aprile tinha Ainda alguns pequenos pormenores a resolver. Pôs em marcha os mecanismos necessários para fazer Astorre Viola regressar da Sicília, ao cabo de um exílio de onze anos. Precisava dele. Na realidade, Preparara-o para aquele preciso momento. Era o seu preferido, acima até dos próprios filhos. Já em criança, Astorre era um chefe, precoce na sua sociabilidade. Além disso, adorava o Dom, que nunca lhe vira nos olhos o medo que por vezes notava nos dos filhos. Embora Valerius e Marcantonio tivessem respectivamente vinte e dezoito anos quando Astorre tinha dez, o garoto cedo soubera marcar a sua independência em relação a eles. Inclusivamente, quando Valerius, dado aos rigores da disciplina militar, tentava castigá-lo, rebelava-se. Marcantonio, muito mais afetuoso, oferecera-lhe o seu primeiro banjo, para encorajá-lo a cantar, pois tinha uma bela voz. Astorre aceitara a oferta como a cortesia de um adulto para com outro.

O único dos primos de quem Astorre aceitava ordens era de Nicole. E ela, apesar de ser dois anos mais velha, tratava-o como se fosse um admirador, como ele começara a exigir logo em criança. Nicole pedia-lhe que lhe fizesse recados e escutava sonhadoramente as baladas italianas que ele lhe cantava. Certa vez, dera-lhe uma bofetada quando ele tentara beijá-la. Porque Astorre, ainda rapazinho, deixava-se arrebatar pela beleza feminina.

E Nicole era bela. Tinha uns grandes olhos escuros e um sorriso sensual; o seu rosto refletia todas as emoções que lhe agitavam a alma. Mas desafiava quem quer que tentasse insinuar que, como mulher, não era tão importante como qualquer homem do seu mundo. Odiava o fato de não ser fisicamente tão forte como os irmãos ou como Astorre, de ver-se obrigada a recorrer aos artifícios da beleza, e não à força, para afirmar a sua vontade. Tudo isto a tornava perfeitamente temerária, e desafiava-os a todos, incluindo o pai, mau grado a sua temível reputação.

Depois de a mulher ter morrido, quando os filhos eram ainda pequenos, Don Aprile adquirira o hábito de passar na Sicília um dos meses de verão. Adorava a vida na sua aldeia natal, perto da cidade de Montelepre, e ainda lá tinha uma propriedade, Villa Grazia, que em tempos fôra o retiro campestre de um conde.

Alguns anos mais tarde, contratara uma governanta, uma viúva siciliana chamada Caterina. Era uma mulher muito bela, com essa beleza robusta e serena das camponesas, dotada de um apurado sentido de economia doméstica, senhora de uma presença austera que lhe granjeara o respeito dos aldeãos. Acabara por tornar-se sua amante. Nada disto revelara à família ou aos amigos, apesar de ser agora um homem de quarenta anos e um rei no seu mundo.

Astorre Viola tinha apenas dez anos quando acompanhara Don Raymonde Aprile à Sicília pela primeira vez. O Don fora chamado a arbitrar um conflito entre as coscas Corleonisi e Clericuzio. Além disso, era sempre um prazer passar um mês de calma e tranqüilidade em Villa Grazia.

Com dez anos, Astorre era afável ― não havia outra palavra. Estava sempre alegre, e o seu rosto moreno, redondo e bonito irradiava amor. Cantava de manhã à noite, com uma doce voz de tenor. E quando não estava a cantar, conversava animadamente. Tinha, no entanto, todas as impetuosas qualidades de um rebelde nato, e aterrorizava os outros rapazes da sua idade.

O Don levou-o consigo à Sicília porque ele era a melhor companhia para um homem de meia-idade, o que constituía um comentário eloqüente sobre qualquer deles, bem como uma reflexão sobre o modo como o Don Aprile educara os seus três filhos.

Depois de ter tratado dos seus assuntos, o Don Aprile mediou a disputa e instaurou uma paz temporária. Feito isto, ficou com tempo para reviver os dias de meninice na aldeia natal Comia limões e laranjas colhidos das árvores, e azeitonas das barricas onde as punham a salgar, e dava grandes passeios com Astorre sob o pesado Sol siciliano, que estendia sobre as casas de pedra e as encostas rochosas um espesso manto de calor. Contava ao rapazinho velhas histórias do Robin dos Bosques da Sicília, das suas lutas contra os mouros, os Franceses, os Italianos e o próprio Papa. E também histórias a respeito de um herói local, o Grande Don Zeno.

À noite, sozinhos na grande varanda de Villa Grazia, ficavam a ver o céu da Sicília incendiar-se com os rastos luminosos de milhares de estrelas cadentes e os relâmpagos que rasgavam o negrume sobre as montanhas ali tão perto. Astorre apanhou imediatamente o dialeto siciliano, e comia azeitonas da barrica como se fossem rebuçados.

Meia dúzia de dias bastaram-lhe para impor a sua liderança a um grupo de garotos da aldeia. Foi uma grande surpresa para o Dom pois as crianças da Sicília são orgulhosas e destemidas. Muitos daqueles querubins de dez anos estavam já familiarizados com a lupara, a onipresente espingarda siciliana.