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Depois de um tempo, começou a chover. Na verdade começou a cair o tipo de chuva que nunca se decide se é chuva ou não. Se você dirigisse nessa chuva, jamais saberia se deveria ligar o limpador de pára-brisa. De pé na chuva, jogando terra na cova com uma pá, qualquer um se sentiria mais suado, mais úmido, mais desconfortável. Fat Charlie continuou a jogar terra na cova, e a Sra. Higgler ficava lá, de pé, com os braços cruzados por cima de seu peito gigantesco, com a chuva fininha umedecendo seu vestido preto e seu chapéu de palha com uma rosa preta de seda, observando-o enquanto enchia a cova de terra.

A terra virou lama e ficou mais pesada.

Depois do que pareceu uma eternidade, e uma eternidade muito incômoda, Fat Charlie deu uma batidinha com a pá no último montinho de terra.

A Sra. Higgler caminhou até ele. Pegou seu paletó da cerca e passou para ele.

— Cê tá ensopado até os ossos e coberto de terra e suor, mas cê amadureceu. Bem-vindo, Fat Charlie.

Ela sorriu e o abraçou contra seu peito largo.

— Eu não estou chorando — explicou Fat Charlie.

— Shhh, calma.

— São os pingos da chuva no meu rosto.

A Sra. Higgler não respondeu. Ela só o abraçava, balançando para lá e para cá, e depois de um tempo Fat Charlie disse:

— Tudo bem. Já estou me sentindo melhor.

— Tem comida lá em casa. Vamos lá pra você comer.

Ele limpou a lama dos sapatos no estacionamento, entrou no seu carro cinza alugado e seguiu a perua vermelho-escura da Sra. Higgler por ruas que 20 anos antes não existiam. Ela dirigia como uma mulher que acabara de descobrir uma caneca enorme de café, da qual precisava muitíssimo, e cuja única missão era beber o máximo que pudesse enquanto dirigia o mais rápido possível. Fat Charlie a seguia o mais de perto que podia, correndo de semáforo a semáforo enquanto tentava adivinhar onde estavam.

Viraram uma rua e, com um sentimento de apreensão cada vez maior, ele se deu conta de que reconhecia o lugar. Era a rua em que havia morado na infância. Até as casas tinham mais ou menos a mesma aparência, embora a maioria delas agora tivesse enormes cercas dr arame à frente dos jardins.

Havia vários carros estacionados na frente da casa da Sra. Higgler. Ele parou atrás de um velho Ford cinza. A Sra. Higgler caminhou até a porta e a abriu com a chave.

Fat Charlie olhou para suas roupas enlameadas e encharcadas de suor.

— Eu não posso entrar desse jeito — disse.

— Já vi coisa pior — respondeu a Sra. Higgler. Então ela suspirou. — Olha só: cê entra, vai direto pro banheiro, lava as mãos e o rosto, limpa tudo, e quando cê terminar nós estaremos na cozinha.

Ele foi até o banheiro. Tudo ali tinha cheiro de jasmim. Tirou sua camisa enlameada, lavou o rosto e as mãos com sabonete com cheiro de jasmim numa pia minúscula. Pegou uma esponja, limpou o peito, esfregou os pontos mais sujos das calças do terno. Olhou a camisa, que era branca quando a colocou pela manhã e agora exibia um marrom bastante encardido, e decidiu não vesti-la. Havia mais camisas em sua bolsa de viagem, no banco de trás do carro alugado. Decidiu sair discretamente da casa, colocar uma camisa limpa e depois encarar o pessoal da casa.

Destrancou a porta do banheiro e a abriu.

Quatro velhas senhoras estavam de pé no corredor, encarando-o. Ele as conhecia. Todas elas.

— Que cê tá fazendo? — perguntou a Sra. Higgler.

— Trocando de camisa — respondeu Fat Charlie. — Camisa no carro. Sim. Volto logo.

Ergueu o queixo, andou pelo corredor com passos largos e saiu pela porta da frente.

— Mas que jeito estranho de falar é esse? — perguntou a pequena Sra. Dunwiddy atrás dele, bem alto.

— Não é uma cena que a gente vê todo dia — comentou a Sra. Bustamonte, embora, por ser ali o litoral da Flórida, o que mais se visse todos os dias eram homens sem camisa, apesar de não usarem calças enlameadas.

Fat Charlie trocou de camisa perto do carro e entrou na casa. As quatro senhoras estavam na cozinha, ocupadas guardando em potinhos Tupperware o que parecia ter sido até então uma grande quantidade de comida.

A Sra. Higgler era mais velha que a Sra. Bustamonte, e ambas eram mais velhas que a Sra. Noles, mas nenhuma delas era tão velha quanto a Sra. Dunwiddy. A Sra. Dunwiddy era muito velha e aparentava isso. Provavelmente não havia eras geológicas tão antigas quanto a Sra. Dunwiddy.

Quando era criança, Fat Charlie imaginava a Sra. Dunwiddy na África Equatorial, olhando com ar de desaprovação, através de seus óculos de lentes grossas, os hominídeos que começavam a ficar eretos. “Fique bem longe do meu quintal”, diria ela a um espécime recentemente desenvolvido (e um tanto nervoso) de Homo Habilis, “ou eu vou dar uma cintada na sua orelha, estou avisando”. A Sra. Dunwiddy cheirava a água de violeta e, por baixo do cheiro de violetas, dava para sentir o che iro de uma mulher bem velha. Era uma senhora miudinha, mas capaz de ofuscar uma tempestade. Fat Charlie, que havia mais de duas décadas seguira uma bolinha de tênis perdida que caíra no quintal dela e acidentalmente quebrara um dos enfeites de seu jardim, ainda morria de medo dela.

Naquele momento, a Sra. Dunwiddy estava comendo com os dedos pedaços de carneiro ao curry dentro de uma tigela Tupperware.

— Uma pena desperdiçar isso — disse, e deixou cair os pedacinhos de carneiro num pires de porcelana.

— Quer comer, Fat Charlie? — perguntou a Sra. Noles.

— Não estou com fome. De verdade.

Quatro pares de olhos o observaram com ar de reprovação através de quatro pares de óculos.

— Não faz bem ficar sem comer nessa tristeza — observou a Sra. Dunwiddy, lambendo a ponta dos dedos e pegando outro pedaço de carneiro marrom e gorduroso.

— Não é isso. Eu só não estou com fome. Só isso.

— A tristeza vai te fazer ficar só pele e osso — sentenciou a Sra. Noles, com um misto de entusiasmo e tristeza.

— Acho que não.

— Vou fazer um prato procê e pôr naquela mesa ali — disse a Sra. Higgler. — Vai lá, senta. Não quero ouvir mais nenhuma desculpa. Tem bastante comida, não precisa se preocupar.

Fat Charlie sentou-se onde ela indicou e, alguns segundos depois, colocaram diante dele um prato bem cheio: cozido de ervilha com arroz, torta de batata doce, carne de porco apimentada, carneiro ao curry, frango ao curry, banana pacova frita e mocotó. Fat Charlie nem havia colocado nada na boca e já sentia a azia começar a arder.

— Onde estão as outras pessoas? — perguntou.

— Os amigos de bebedeira do teu pai saíram pra beber. Foram fazer uma sessão de pescaria em memória dele numa ponte — respondeu a Sra. Higgler. Ela derramou dentro da pia o restante do café de sua caneca de viagem, do tamanho de um balde, e substituiu pelo conteúdo recém-passado e fumegante de um bule de café.

A Sra. Dunwiddy lambeu os dedos com sua língua roxa até deixá-los limpos e mudou de cadeira até ficar perto de onde Fat Charlie estava sentado, com o prato ainda intocado. Quando pequeno, ele acreditava piamente que a Sra. Dunwiddy era uma bruxa. Não uma bruxa boa, mas o tipo de bruxa que as crianças tinham que empurrar para dentro do forno se quisessem escapar com vida. Era a primeira vez que ele a via em mais de 20 anos, e sentia que precisava conter a vontade de gritar e se esconder embaixo da mesa.

— Já vi muita gente morrer — começou a Sra. Dunwiddy. — Na minha época. Se você ficar bem velho, vai ver também. Todo mundo morre um dia, basta dar tempo ao tempo. — Ela fez uma pausa. — Mas eu nunca pensei que fosse acontecer com o teu pai.

E balançou a cabeça.

— Como ele era? — perguntou Fat Charlie. — Quando era jovem.

A Sra. Dunwiddy olhou para ele através de seus óculos extremamente grossos, contraiu os dedos e balançou a cabeça. — Isso era antes do meu tempo — foi tudo o que ela disse. — Coma o mocotó.

Fat Charlie suspirou e começou a comer.

Era um de tarde, e eles estavam sozinhos na casa.