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— Deus do céu! — Depois, um pouco mais alto: — Charlie? Tem uma coisa que eu quero falar com você lá fora. Agora.

Saíram para o corredor do hospital, deixando Spider no quarto.

— Que foi? — perguntou Charlie.

— Que foi o quê?

— O que você quer falar comigo?

— Nada.

— Então por que saímos do quarto? Você ouviu o que ela disse. Ela o odeia. A gente não devia ter deixado os dois juntos. Ela deve estar matando o Spider neste momento.

Daisy olhou para ele com a mesma expressão com a qual Jesus Cristo talvez teria olhado para alguém que tivesse acabado de explicar que não sabia se era alérgico a pão e peixe, então será que Ele não poderia fazer uma saladinha básica de frango? Era uma expressão de pena, e também de uma compaixão quase infinita.

Pôs o dedo em riste perto dos lábios e o puxou de volta para a porta. Ele olhou para dentro do quarto do hospitaclass="underline" não parecia que Rosie estivesse matando Spider. Muito pelo contrário, aliás.

— Ah... — disse Charlie.

Eles estavam se beijando. Dito dessa maneira, ninguém poderia culpar uma pessoa que observasse a cena se pensasse que era um beijo normal, com contato dos lábios, da pele, talvez um pouco de língua. Talvez nem todos perceberiam como Spider sorria, como seus olhos brilhavam. Quando o beijo acabou, nem todos notariam o modo como estava ali, de pé, como se fosse um homem que acabara de descobrir a arte de ficar em pé e que também descobrira como fazer isso melhor do que todas as outras pessoas.

Charlie voltou-se para o corredor e viu Daisy conversando com diversos médicos e o policial que tinham conhecido na noite anterior.

— Bom, a gente sempre desconfiou que ele fosse um mau elemento — dizia o policial a Daisy. — Porque, francamente, esse tipo de comportamento só pode vir de estrangeiros. As pessoas daqui nunca fariam essas coisas.

— Sim... claro.. — respondeu Daisy.

— Sou muito, muito grato a vocês — agradeceu o chefe da polícia, dando tapinhas amigáveis no ombro de Daisy de um jeito que a fez querer morrer. — Esta mocinha aqui salvou a vida daquela mulher — continuou o policial para Charlie, aproveitando para dar também um tapinha condescendente no ombro dele antes de sair com os médicos pelo corredor.

— E então? O que está acontecendo?

— Bom, Grahame Coats morreu — respondeu ela. — Quer dizer, mais ou menos. Também não há muita esperança para a mãe de Rosie.

— Entendo.

Pensou sobre o assunto. Quando terminou de pensar, chegou a uma decisão.

— Você me dá um segundinho para falar com o meu irmão? Acho que eu e ele precisamos conversar.

— Eu preciso voltar ao hotel, de qualquer maneira. Ver se chegou algum e-mail pra mim. Talvez precise fazer ligações e me desculpar eternamente ao telefone. Descobrir se ainda tenho uma carreira pela frente.

— Mas você é uma heroína, não?

— Não acho que sou paga para cometer atos de heroísmo — observou ela, um tanto desanimada. — Me encontre no hotel quando terminar.

Spider e Charlie caminharam pela rua principal de Williamstown, à luz do sol da manhã.

— Sabe, esse chapéu é bem legal — disse Spider.

— Você acha?

— Sim. Posso experimentar?

Charlie deu a Spider o panamá verde. Spider colocou o chapéu e olhou seu reflexo na vitrine de uma loja. Fez uma careta e deu o chapéu de volta a Charlie. E disse, desapontado:

— Bom., pelo menos fica legal em você.

Charlie colocou o chapéu de volta. Alguns chapéus só podem ser usados se você quer passar um ar de desenvoltura. Colocar o chapéu num determinado ângulo e andar com passos leves, como se estivesse prestes a sair dançando. São chapéus que exigem muito de quem os usa. E esse chapéu era um deles, e Charlie aceitava o desafio.

— A mãe de Rosie está morrendo — contou.

— É.

— Eu nunca, nunca gostei dela.

— Eu não a conhecia tão bem quanto você. Mas, com o tempo, tenho certeza de que eu também não gostaria dela nem um pouco.

— Precisamos salvar a vida dela, não?

Charlie disse isso sem entusiasmo, como se dissesse que precisa marcar consulta com o dentista.

— Não sei se podemos fazer esse tipo de coisa.

— O papai fez isso pela nossa mãe. Fez ela melhorar por um tempo.

— Mas isso foi ele. Não sei como a gente faria isso.

— O lugar no fim do mundo. O das cavernas.

— Começo do mundo, não fim. O que é que tem?

— Não podemos simplesmente ir pra lá? Sem aquela abobrinha toda de velas e ervas?

Spider ficou em silêncio. E então assentiu com a cabeça.

— Acho que sim.

Viraram-se juntos, para uma direção que nem sempre estivera ali, e caminharam para longe da rua principal de Williamstown.

Agora o sol se erguia, e Charlie e Spider caminhavam por uma praia cheia de crânios. Não eram exatamente crânios humanos. Cobriam a areia como se fossem pedrinhas amarelas. Charlie evitava pisar neles o máximo que podia, enquanto Spider andava por cima deles, esmagando-os. Chegando ao fim da praia, pegaram uma saída à esquerda que dava para tudo, e as montanhas do começo do mundo erguiam-se à frente deles, e o penhasco lá embaixo.

Charlie lembrou-se da última vez que estivera ali. Parecia que tinha sido mil anos antes.

— Onde estão todos? — perguntou bem alto, e sua voz ecoou contra as rochas. — Alguém aí?

E lá estavam eles, observando-o. Todos eles. Pareciam mais altivos agora. Menos humanos, mais animalescos, mais selvagens. Deu-se conta de que os vira como pessoas da última vez porque esperava encontrar pessoas. Mas não eram pessoas. Dispostos sobre as pedras, acima deles, estavam o Leão e o Elefante, o Crocodilo e a Serpente, o Coelho e o Escorpião, e todos os outros, centenas deles. Eles os observavam com olhos sérios: animais, sem dúvida. Animais que nenhuma pessoa viva seria capaz de identificar. Todos os animais que já apareceram nas histórias. Todos os animais com que as pessoas já sonharam, adoraram religiosamente ou foram capazes de estabelecer relações.

Charlie viu todos eles.

“Uma coisa é cantar para salvar a própria pele, num salão cheio de gente jantando, de impulso, com alguém apertando uma arma contra a barriga da moça que você—, da moça que você— Ah. Bom”, pensou Charlie, “vou pensar nisso depois.”

Naquele momento, a única coisa que queria era pôr a cabeça num saco de papel ou então desaparecer.

— Deve haver centenas deles — comentou Spider, admirado.

Houve um movimento rápido no ar, sobre uma rocha perto deles, o qual se transformou na Mulher Pássaro. Ela cruzou os braços e ficou olhando para eles.

— O que quer que você pense em fazer, é melhor fazer logo. Eles não vão esperar pra sempre — observou Spider.

A boca de Charlie estava seca.

— Certo.

— Então— Ahm.... O que devemos fazer agora?

— Vamos cantar para eles.

— Quê?

— E assim que resolvemos as coisas. Eu descobri. Nós cantamos, eu e você.

— Não entendo. Cantar o quê?

— A canção. Você canta essa canção e resolve tudo — a voz de Charlie soava desesperada. — A canção.

Os olhos de Spider estavam vazios como poças com água da chuva. Charlie viu neles coisas que não vira antes: afeição, talvez. Confusão também. E, em grande parte, arrependimento.

— Eu não sei do que você está falando.

O Leão os observava do lado de uma pedra que saía do chão. O Macaco os observava de uma árvore. E o Tigre..

Charlie viu o Tigre. Ele caminhava alegremente. Sua face estava inchada, ferida, mas havia um brilho em seus olhos. Parecia que ficaria mais do que feliz em empatar o placar com Charlie e Spider.

Charlie abriu a boca. Saiu um som baixinho, um coaxado, como se ele tivesse engolido uma rã nervosa.

— Não adianta. Foi uma idéia idiota, não foi? — sussurrou para Spider.

— É.

— Você acha que dá para a gente simplesmente ir embora?