— Você deve me achar uma estúpida.
— Não, mamãe. Você não é estúpida. A vida é que é injusta.
— Tem visto sua irmã?
— Falei com ela há pouco tempo.
— Ela nunca vem me ver.
— Eu sei, mamãe. Ela também não vem me ver.
— Você trabalha?
— Sim, mamãe. Estou me virando bem.
— Está morando onde? Eu nem sei onde você mora.
— Moro no nosso antigo apartamento da Lundagatan. Estou ali há muitos anos. Paguei as contas atrasadas.
— Quem sabe no verão vou visitar você.
— Claro. No verão.
A mãe acabou abrindo a embalagem e aspirou o perfume, deliciada.
— Obrigada, Camilla — disse.
— Lisbeth. Sou a Lisbeth. Camilla é a minha irmã.
A mãe pareceu incomodada. Lisbeth Salander propôs que elas fossem até a sala de tevê.
* * *
Os programas Disney de Natal eram retransmitidos a toda hora na televisão quando Mikael Blomkvist passou para ver sua filha Pernilla na casa da ex-mulher Monica e do novo marido dela, em Sollentuna. Trazia presentes para Pernilla; após discutir o assunto com Monica, eles concordaram em dar à filha um iPod, um MP3-player bastante caro e não maior que uma caixa de fósforos, capaz de abrigar toda a sua volumosa coleção de discos.
Pai e filha passaram uma hora juntos no quarto dela, no andar de cima. Mikael e a mãe de Pernilla se divorciaram quando ela tinha somente cinco anos, e dois anos depois ela ganhara um novo pai. Mikael não havia de modo algum evitado o contato; Pernilla ia visitá-lo algumas vezes por mês e todo ano, durante as férias, passava temporadas de uma semana na cabana de Sandhamn. Monica nunca tentou impedir que os dois se encontrassem, e Pernilla nada tinha contra rever o pai — ao contrário, os dias que eles passavam juntos costumavam ser bons momentos. Ainda assim, Mikael deixou a filha decidir em que medida desejava vê-lo, sobretudo depois que Monica voltou a se casar. Houve alguns anos, no início da adolescência, em que o contato praticamente cessou e Pernilla só havia pedido para voltar a vê-lo com mais frequência nos últimos dois anos.
A filha acompanhara o processo convicta de que Mikael afirmava a verdade: ele era inocente mas não podia provar.
Ela falou de um eventual namorado no colégio e o surpreendeu ao revelar que se tornara membro de uma Igreja local e que se considerava uma devota. Mikael se absteve de qualquer comentário.
Foi convidado para jantar, mas recusou a oferta; já combinara com a irmã passar a véspera de Natal com ela e a família no subúrbio yuppie de Stäket.
De manhã, também fora convidado a passar o Natal com Erika e o marido em Saltsjöbaden. Recusou o convite com polidez, certo de que havia sem dúvida um limite na boa vontade de Lars para com os dramas triangulares, e ele não tinha vontade nenhuma de descobrir até onde ia esse limite. De acordo com Erika, a proposta partira do próprio marido, e ela criticou sua timidez em participar dos jogos de um trio. Mikael rira — Erika sabia que ele era um heterossexual inflexível e que o convite não era a sério —, mas a decisão de não festejar o Natal na companhia do marido da amante era irrevogável.
Em vez disso, ele foi bater à porta da irmã Annika Blomkvist, agora Annika Giannini. O marido de origem italiana, os dois filhos e vários outros membros da família do marido cortavam naquele momento o peru de Natal. Annika cursara direito sem a menor vontade, depois trabalhara alguns anos como estagiária no tribunal e como substituta de promotor, antes de abrir seu próprio escritório de advocacia, associada a alguns amigos e numa sala com vista para o bairro de Kungsholmen. Especializou-se em direito de família e, sem que Mikael percebesse, sua irmã mais nova começou a aparecer nas páginas das revistas e em debates da televisão como feminista célebre e advogada dos direitos da mulher. Defendia com frequência mulheres ameaçadas ou importunadas por ex-maridos ou ex-namorados.
Quando Mikael a ajudava a preparar o café, ela pôs a mão em seu braço e lhe perguntou como ele estava.
— Nunca me senti tão por baixo, se quer saber.
— Da próxima vez arranje um advogado de verdade — disse ela.
— Acho que nesse caso nem o melhor advogado do mundo mudaria a situação.
— O que realmente aconteceu?
— Depois eu conto, maninha.
Ela o abraçou com ternura e deu-lhe um beijo na bochecha antes de voltarem para junto dos outros com o bolo e o café.
Por volta das sete da noite, Mikael se desculpou e pediu licença para utilizar o telefone na cozinha. Chamou Dirch Frode e ouviu sua voz na outra ponta da linha, com uma algazarra de vozes ao fundo.
— Feliz Natal! — saudou Frode. — Então, decidiu?
— Não tenho nada de especial para fazer e o senhor conseguiu despertar minha curiosidade. Irei no dia 26, se lhe convém.
— Perfeito. Não sabe o quanto sua decisão me alegra. Desculpe-me, mas estou cercado de filhos e netos e mal consigo ouvir o que diz. Posso ligar amanhã para marcar uma hora?
Mikael Blomkvist se arrependeu da decisão antes mesmo que a noite terminasse, mas como agora lhe parecia muito complicado voltar atrás, na manhã do dia 26 instalou-se num trem rumo ao Norte. Mikael tinha carteira de habilitação, porém nunca se dera o trabalho de comprar um carro.
Frode tinha razão, a viagem era curta. Ele passou por Uppsala, depois percorreu as pequenas cidades industriais espalhadas ao longo da costa. Hedestad era uma das menores, a pouco mais de uma hora ao norte de Gävle.
Durante a noite houvera fortes precipitações de neve, mas o céu limpara e o ar estava gelado quando ele desceu na estação. Mikael logo percebeu que suas roupas não estavam adequadas ao inverno rigoroso do Norrland. Dirch Frode o identificou imediatamente, o acolheu com simpatia na plataforma e o fez entrar depressa no interior aquecido de um Mercedes. Na cidade, o trabalho de desobstrução da neve era intenso, e Frode manobrou com prudência entre as grandes escavadeiras. A neve criava um contraste exótico com Estocolmo, teriam dito em outro país, embora não houvesse mais de três horas de distância até a capital e seus enfeites de Natal na cidade velha. Mikael olhava furtivamente o advogado: um rosto anguloso, cabelos brancos bem curtos, óculos de lentes grossas sobre um nariz volumoso.
— É a primeira vez que vem a Hedestad? — perguntou Frode. Mikael assentiu com a cabeça.
— É um velho burgo industrial. Não muito grande, tem apenas oitenta mil habitantes. Mas as pessoas gostam daqui. Henrik mora em Hedeby, na parte antiga, a aldeia, como é chamada. Fica logo na entrada sul da cidade.
— O senhor também mora aqui? — perguntou Mikael.
— Atualmente, sim. Nasci em Skane, mas comecei a trabalhar para Vanger logo depois que me formei, em 1962. Especializei-me em direito comercial e, com o passar dos anos, Henrik e eu nos tornamos amigos. Hoje estou aposentado, mas Henrik continua sendo meu cliente, o único. Ele também está aposentado e não precisa dos meus serviços com muita frequência.
— A não ser para aliciar jornalistas de má reputação.
— Não se subestime. Você não é o único que perdeu uma parada contra Hans-Erik Wennerström.
Mikael olhou Frode de soslaio, não sabendo muito bem como interpretar essa observação.
— Esse convite tem algo a ver com Wennerström? — perguntou.
— Não — respondeu Frode. — Henrik Vanger não faz parte exatamente do círculo de amigos de Wennerström, e ele acompanhou o processo com grande interesse. É para um caso bem diferente que ele deseja vê-lo.
— Sobre o qual o senhor não quer me falar.
— Sobre o qual não me cabe falar. Ajeitamos as coisas de modo que possa passar a noite na casa de Henrik Vanger. Se não lhe convém, podemos fazer uma reserva no Grande Hotel da cidade.