Выбрать главу

— Ele não tinha seu próprio dinheiro?

— A parte que lhe cabia no grupo estava bloqueada. Não podia ser vendida fora da família. É preciso também dizer que Richard, em casa, era um tirano brutal. Batia na mulher e maltratava o filho. Gottfried era uma criança submissa e humilhada. Tinha treze anos quando Richard morreu na guerra; acho que foi o dia mais feliz da vida de Gottfried. Meu pai se compadeceu da viúva e do neto e os chamou de volta a Hedestad, alojando-os num apartamento e cuidando para que Margareta tivesse uma existência decente. Se Richard representava o lado sombrio e fanático da família, Gottfried representava seu lado preguiçoso. Quando completou dezoito anos, eu me encarreguei dele, afinal, era filho do meu falecido irmão, ainda que a diferença de idade entre nós não fosse grande. Eu era apenas sete anos mais velho que meu sobrinho, mas já estava na direção do grupo e era evidente que assumiria o comando depois do meu pai, enquanto Gottfried era praticamente considerado um intruso na família.

Henrik Vanger refletiu por um momento.

— Meu pai não sabia muito bem como se comportar com o neto e fui eu que insisti para que cuidássemos dele. Arranjei-lhe trabalho no grupo, isso depois da guerra. Sem dúvida ele tentou desempenhar honestamente suas tarefas, mas tinha dificuldade em se concentrar. Era um cabeça-tonta, charmoso e festeiro, sempre às voltas com mulheres, e havia épocas em que bebia muito. Eu não sabia definir meus sentimentos por ele... não era um incapaz, mas estava longe de ser confiável, e muitas vezes me decepcionou profundamente. Com os anos tornou-se alcoólatra e, em 1965, morreu afogado num acidente. Aconteceu aqui, na outra extremidade da ilha, onde construíra uma cabana para a qual se retirava seguidamente a fim de beber.

— Então ele é o pai de Harriet e de Martin? — perguntou Mikael, apontando para o retrato sobre a mesa baixa. A contragosto, foi obrigado a reconhecer que o relato do velho o interessava.

— Exatamente. No fim dos anos 1940, Gottfried conheceu uma mulher chamada Isabella Koenig, uma jovem alemã que havia chegado à Suécia depois da guerra. Isabella era uma mulher linda, tão linda como Greta Garbo ou Ingrid Bergman. Sem dúvida Harriet herdou genes mais de Isabella que de Gottfried. Como você pode ver na foto, ela já era muito bonita com apenas catorze anos.

Imitando Henrik Vanger, Mikael contemplou a foto.

— Mas deixe-me prosseguir. Isabella nasceu em 1928 e ainda está viva. Tinha onze anos quando estourou a guerra, e você bem pode imaginar o que era ser adolescente em Berlim com a aviação aliada despejando bombas sobre a cidade. Imagino que, quando desembarcou na Suécia, ela teve a impressão de estar chegando ao paraíso. Infelizmente, tinha muitos vícios em comum com Gottfried: era esbanjadora e vivia o tempo todo em festas; ela e Gottfried mais pareciam companheiros de bebida que marido e mulher. Viajava sem parar, na Suécia e no exterior, e de maneira geral não tinha o menor senso de responsabilidade. O que evidentemente afetou os filhos. Martin nasceu em 1948 e Harriet em 1950. A infância deles foi caótica, com uma mãe que a toda hora os abandonava e um pai que afundava no alcoolismo. Em 1958 resolvi intervir. Gottfried e Isabella moravam em Hedestad e forcei-os a se mudar para cá. Eu estava começando a ficar cansado daquilo e decidi romper aquele círculo infernal. Martin e Harriet viviam ao deus-dará. Henrik Vanger olhou seu relógio.

— Meus trinta minutos se esgotaram, mas estou chegando ao final da história. Concede-me alguns minutos mais?

Mikael balançou a cabeça e falou:

— Continue.

— Vou ser breve então. Eu não tinha filhos, um contraste considerável com os outros irmãos e membros da família, que pareciam obcecados pela necessidade estúpida de perpetuar a linhagem. Gottfried e Isabella vieram morar aqui, mas o casamento começou a se desfazer. Depois de um ano, Gottfried se instalou em sua cabana, onde passava longos períodos sozinho, só retornando à casa de Isabella quando estava muito frio. Acabei me encarregando de Martin e de Harriet. Em mais de um aspecto eles passaram a ser os filhos que nunca tive. Martin era... Para dizer a verdade, houve um momento em sua juventude em que temi que seguisse as pegadas do pai. Era indolente, introvertido e hipocondríaco, mas também podia ser charmoso e entusiasta. Passou por alguns anos difíceis na adolescência, mas se endireitou ao começar a universidade. Ele... bem, apesar de tudo ele é o diretor-executivo do que resta do grupo Vanger, o que deve ser encarado como um saldo razoável.

— E Harriet? — perguntou Mikael.

— Harriet tornou-se a menina dos meus olhos. Tentei dar a ela segurança e, a partir daí, confiança em si mesma. Nós dois nos entendíamos muito bem. Considerava-a como filha e ela passou a ser mais próxima de mim que dos próprios pais. Entenda, Harriet era uma menina muito especial. Introvertida como o irmão, na adolescência teve uma atração romântica pela religião, o que a distinguia de todos os outros membros da família. Mas também tinha talentos evidentes e uma inteligência rara. Um grande senso moral e uma grande honestidade. Quando estava com catorze, quinze anos, eu tinha a certeza de que ela, mais do que o irmão e todos os primos e sobrinhos ao meu redor, seria um dia chamada para dirigir o grupo Vanger ou, pelo menos, para desempenhar algum papel central nele.

— E o que aconteceu?

— Chegamos agora à verdadeira razão pela qual eu gostaria de contratá-lo. Quero que descubra quem, na família, assassinou Harriet Vanger e há quase quarenta anos vem tentando me fazer mergulhar na loucura.

5. QUINTA-FEIRA 26 DE DEZEMBRO

Pela primeira vez desde que Henrik Vanger iniciara seu monólogo, o velho conseguiu surpreender Mikael, que pediu mesmo que ele repetisse, para estar certo de ter ouvido bem. Nenhuma das informações que colhera na internet sugeria que um assassinato tivesse ocorrido na família Vanger.

— Foi em 22 de setembro de 1966. Harriet tinha dezesseis anos e acabava de se classificar em primeiro lugar no colégio. Era um sábado e foi o pior dia da minha vida. Reconstituí o desenrolar dos acontecimentos tantas vezes que penso ser capaz de descrever minuto a minuto o que se passou naquele dia, exceto o mais importante.

Fez um gesto com a mão, como se varresse o ar.

— Grande parte da família estava reunida aqui nesta casa. Era um daqueles terríveis jantares anuais de família, quando sócios do grupo Vanger se reuniam para discutir negócios. Meu avô criara essa tradição na sua época, e o resultado, na maioria das vezes, eram reuniões mais ou menos detestáveis. A tradição chegou ao fim nos anos 1980, quando Martin decidiu, pura e simplesmente, que todas as discussões relativas à empresa ocorreriam nas reuniões e nas assembléias regulares. Foi a melhor decisão que tomou na vida. Faz vinte anos que a família não se reúne para esse tipo de encontro.

— Você disse que Harriet foi assassinada...

— Espere. Deixe-me contar o que aconteceu. Era um sábado, portanto. Era também a Festa das Crianças, com um desfile organizado pelo clube de atletismo de Hedestad. Harriet foi à cidade, durante o dia, para assistir ao desfile com alguns colegas do colégio. Voltou um pouco depois das duas da tarde; o jantar estava previsto para as cinco e ela era esperada, como todos os outros jovens da família.

Henrik Vanger levantou-se e foi até a janela. Fez um sinal para que Mikael o acompanhasse e apontou com um dedo:

— As duas e quinze, alguns minutos depois de Harriet ter chegado em casa, um acidente terrível aconteceu ali na ponte. Um certo Gustav Aronsson, irmão de um proprietário rural de Östergarden, uma fazenda aqui da ilha, entrou de carro na ponte e colidiu de frente com um caminhão-tanque que se dirigia à ilha para fornecer óleo doméstico. Nunca se chegou a estabelecer realmente como o acidente ocorreu, pois há boa visibilidade nos dois sentidos, mas ambos vinham muito depressa, e o que podia ter sido um acidente menor se transformou em uma catástrofe. O motorista do caminhão tentou evitar a colisão girando instintivamente o volante. O caminhão-tanque bateu na grade lateral e virou, ficando atravessado na ponte com a traseira em grande parte para fora da beirada... Uma barra de metal furou o tanque, e óleo inflamável começou a vazar. Enquanto isso, Gustav Aronsson, prensado no carro e sofrendo terrivelmente, berrava sem parar. O motorista do caminhão-tanque também se feriu, mas conseguiu sair da cabine.