Dragan Armanskij despertou Lisbeth Salander ao chamá-la ao telefone à uma e meia da tarde.
— O que é? — ela perguntou, meio dormindo. Sua boca estava com gosto de alcatrão.
— A história de Mikael Blomkvist. Acabo de falar com o nosso cliente, o senhor Frode.
— E aí?
— Ele telefonou para dizer que podemos abandonar a investigação sobre Wennerström.
— Abandonar? Mas eu já comecei a trabalhar no caso.
— Entendo, mas Frode não está mais interessado.
— Assim, sem mais?
— Ele é quem decide. Se não quer continuar, paciência.
— Havíamos acertado uma remuneração.
— Você trabalhou quanto tempo? Lisbeth Salander refletiu.
— Um pouco mais que três dias completos.
— Acertamos um teto de quarenta mil coroas. Vou fazer uma fatura de dez mil; você ficará com a metade, o que é razoável para três dias desperdiçados. É o preço que ele terá de pagar por ter iniciado o caso.
— E o que faço com o material que encontrei?
— É alguma coisa importante? Ela refletiu um pouco.
— Não.
— Frode não pediu um relatório. Guarde o material em algum lugar, caso ele volte. Ou então jogue fora. Tenho um outro trabalho para você na semana que vem.
Lisbeth Salander permaneceu um momento com o telefone na mão depois que Armanskij desligou. Foi até seu canto de trabalho na sala de estar e olhou as anotações que espetara na parede e o monte de papéis amontoados na escrivaninha. Sua coleta consistia principalmente de recortes da imprensa e textos copiados da internet. Pegou os papéis e os enfiou numa gaveta da escrivaninha.
Franziu as sobrancelhas. O estranho comportamento de Mikael Blomkvist na sala do tribunal lhe parecera um desafio interessante e Lisbeth Salander não gostava de interromper o que havia começado. Todo mundo tem segredos. Trata-se apenas de descobrir quais são.
II. ANÁLISE DAS CONSEQUÊNCIAS - 3 DE JANEIRO A 17 DE MARÇO
Na Suécia, 46% das mulheres sofreram violência de um homem.
8. SEXTA-FEIRA 3 DE JANEIRO – DOMINGO 5 DE JANEIRO
Quando Mikael Blomkvist desceu do trem em Hedestad pela segunda vez, o céu estava azul-pastel e o ar gelado. Um termômetro na fachada da estação indicava dezoito graus negativos. Mais uma vez ele usava sapatos pouco adaptados ao frio. Ao contrário da visita anterior, o amável advogado Frode não viera esperá-lo com um carro aquecido. Mikael apenas dissera o dia em que chegaria, sem especificar o horário do trem. Supôs que haveria um ônibus para a aldeia, mas não teve vontade de carregar duas malas pesadas e uma sacola atrás de um ponto de ônibus. Dirigiu-se a um ponto de táxi do outro lado da esplanada em frente à estação.
Entre o Natal e o Ano-novo, as precipitações de neve haviam sido violentas e as montanhas acumuladas ao longo do caminho provavam que o serviço de desobstrução da prefeitura de Hedestad trabalhara sem parar. O motorista de táxi, que a placa de identificação no pára-brisa dizia chamar-se Hussein, concordou com a cabeça quando Mikael perguntou se o tempo causara muitos problemas. Com o mais puro sotaque do Norrland, contou que fora a pior tempestade de neve havia décadas e que se arrependia de não ter tirado férias de inverno para passar o Natal na Grécia.
Mikael indicou o caminho ao taxista até o pátio amplo em frente à casa de Henrik Vanger e, depois de subir com as malas até a entrada, olhou o carro desaparecendo em direção a Hedestad. Sentiu-se de repente muito só e indeciso. Erika talvez tivesse razão em dizer que todo esse projeto era insensato. Ouviu a porta se abrir às suas costas e se virou. Henrik Vanger estava ali, vestindo um espesso casaco de couro, calçando botas forradas e tendo na cabeça um boné com orelheiras. Mikael vestia apenas jeans e uma jaqueta leve de couro.
— Já que vai morar aqui, primeiro precisa aprender a se vestir nesta época do ano. — Apertaram-se as mãos. — Tem certeza de que não quer ficar na casa principal? Não? Então vamos acomodá-lo em sua nova moradia.
Uma das exigências nas negociações com Henrik Vanger e Dirch Frode fora que Mikael pudesse morar num lugar onde ficasse independente e pudesse ir e vir à vontade. Henrik guiou Mikael em direção à ponte e abriu o portão de um pátio recentemente desobstruído diante de uma pequena casa de madeira. Não estava trancada, e o velho abriu a porta. Entraram num pequeno vestíbulo, onde Mikael depositou as malas com um suspiro de alívio.
— Aqui está o que chamamos a casa dos convidados, onde hospedamos as pessoas que ficam por algum tempo. Foi aqui que você e seus pais se instalaram em 1963. É uma das construções mais antigas do povoado, embora modernizada. Cuidei para que Gunnar Nilsson, o meu faz-tudo, pusesse o aquecimento para funcionar esta manhã.
A casa consistia em uma grande cozinha e dois pequenos quartos, ao todo uns cinquenta metros quadrados. A cozinha ocupava a metade da área; moderna, tinha fogão elétrico, uma pequena geladeira, um balcão com pia, e junto à parede que dava para o vestíbulo havia também um velho aquecedor de metal fundido, no qual já ardia um bom fogo.
— Só precisará usar esse aquecedor se fizer muito frio. Há um baú com lenha no vestíbulo e um pequeno depósito nos fundos da casa. Estava desativado desde o último outono e voltamos a acendê-lo esta manhã para aquecer as paredes. Mas os aquecedores elétricos deverão ser suficientes durante o dia. Evite apenas pôr roupas em cima deles, para não provocar um incêndio.
Mikael assentiu com a cabeça e olhou ao redor. Havia janelas em três lados; da mesa da cozinha avistava-se a ponte a uns trinta metros. Além da mesa, a cozinha era equipada com dois armários, cadeiras, um antigo banco de madeira e uma prateleira com jornais. No alto da pilha, um número de Se, datado de 1967. Num canto próximo à mesa, um aparador podia servir de escrivaninha.
A porta de entrada da cozinha ficava próxima ao aquecedor a lenha. Do outro lado, duas portas estreitas conduziam a dois pequenos cômodos. O da esquerda, mais próximo da parede externa, estava mobiliado com uma mesa de trabalho, uma cadeira e uma estante ao longo da parede. O outro cômodo, entre o vestíbulo e o escritório, era um quarto relativamente pequeno, com uma cama de casal bastante estreita, um criado-mudo e um armário. Nas paredes havia alguns quadros com cenas da natureza. Os móveis e os papéis de parede da casa estavam velhos e descoloridos, mas tudo cheirava a limpeza. O soalho fora cuidadosamente encerado. O quarto tinha outra porta, que levava diretamente ao vestíbulo, onde um velho cubículo fora transformado em banheiro com ducha.
— A água pode vir a ser um problema — disse Henrik. — Verificamos que está funcionando bem hoje de manhã, mas como a tubulação é muito superficial, se o frio persistir, pode congelar. Há um balde no vestíbulo. Se for necessário, vá buscar água na minha casa.
— Vou precisar de um telefone — disse Mikael.
— Já fiz o pedido. Virão instalar depois de amanhã. E então, o que acha? Se mudar de opinião, pode se transferir para a casa principal quando quiser.
— Tudo vai correr bem — respondeu Mikael, longe de estar convencido de que a situação na qual se metera era razoável.
— Ótimo. Ainda temos uma hora antes que escureça. Podemos dar uma volta para você conhecer o povoado. Sugiro que use botas e meias grossas de lã, que poderá encontrar no armário do vestíbulo.
Mikael aquiesceu, mas decidiu que no dia seguinte percorreria as lojas para comprar ceroulas e calçados próprios para o inverno.
O velho começou o passeio explicando que o vizinho de Mikael do outro lado da estrada era Gunnar Nilsson, o empregado que Henrik insistia em chamar de seu faz-tudo. Mas Mikael logo entendeu que ele cuidava da manutenção das construções da ilha e também de várias residências em Hedestad.