Harald Vanger parecia um espírito invisível mas eternamente presente, marcando a vida do povoado com sua ausência. Na imaginação de Mikael, Harald adquiria cada vez mais a forma de um Gollum malévolo que espionava os arredores atrás das cortinas e se entregava a atividades misteriosas em seu covil hermeticamente fechado.
Uma vez por dia, Harald recebia a visita de uma empregada doméstica, uma mulher de idade que vinha do outro lado da ponte e chafurdava, com cestos carregados de alimentos, na neve amontoada até a porta, já que ele se recusava a desobstruir a entrada. Gunnar Nilsson, o faz-tudo, balançou a cabeça quando Mikael o questionou. Explicou que se propusera limpar a neve, mas que Harald não queria ninguém pondo o pé no seu terreno. Uma única vez, no primeiro inverno depois que Harald retornou à ilha, Gunnar Nilsson dirigiu-se automaticamente com o trator à casa de Harald para desobstruir a neve da entrada, como fazia diante de todas as casas. A iniciativa lhe valeu ver Harald Vanger sair de casa, vociferando, gesticulando, exigindo que ele fosse embora.
Por outro lado, Nilsson lamentava não poder limpar o pátio de Mikael, pois o trator não passava naquela entrada estreita. Ali era preciso uma pá de neve e trabalho braçal.
Em meados de janeiro, Mikael Blomkvist encarregou seu advogado de tentar saber quando ele deveria cumprir os três meses de prisão. Queria se livrar da pena o mais rápido possível. Ir para a prisão revelou-se mais fácil do que imaginava. Após uma semana de lengalenga, ficou decidido que Mikael se apresentaria no dia 17 de março à prisão de Rullaker, perto de Östersund, penitenciária em regime aberto para condenações leves. O advogado de Mikael informou também que a pena provavelmente seria reduzida.
— Ótimo — disse Mikael sem grande entusiasmo.
Estava sentado à mesa da cozinha acariciando o gato de pêlos ruivos, que se habituara a surgir a intervalos regulares para passar a noite na casa dele. Helen Nilsson, do outro lado da estrada, disse-lhe que o gato se chamava Tjorven, que não pertencia a ninguém em particular, mas fazia a ronda de casa em casa.
* * *
Mikael se reunia com Henrik Vanger quase todas as tardes. Às vezes para uma breve conversa, às vezes para discutir durante horas o desaparecimento de Harriet e diferentes detalhes da investigação particular de Henrik.
Quase sempre Mikael formulava uma teoria que Henrik se aplicava em torpedear. Mikael tentava manter distanciamento de sua missão, mas em alguns momentos se sentia terrivelmente fascinado pelo mistério do desaparecimento de Harriet.
Mikael prometera a Erika montar também uma estratégia que lhes permitisse retomar a luta contra Hans-Erik Wennerström, mas, depois de um mês em Hedestad, não havia sequer aberto as pastas sobre o caso que o levara ao tribunal. Ao contrário — rechaçava inteiramente o problema. Toda vez que começava a refletir sobre Wennerström e sua própria situação, caía num desânimo profundo. Nos momentos de lucidez, perguntava-se se não estaria ficando maluco como o velho Vanger. Sua carreira profissional desabara como um castelo de cartas e sua reação fora refugiar-se num vilarejo do campo para expulsar seus fantasmas. Sem contar a falta que sentia de Erika.
Henrik Vanger observava seu colega de investigação com uma discreta inquietude. Notava que Mikael nem sempre exibia um equilíbrio perfeito. Em fins de janeiro, o velho tomou uma decisão que surpreendeu a si próprio. Pegou o telefone e ligou para Estocolmo. A conversa durou vinte minutos e girou principalmente em torno de Mikael Blomkvist.
Foi necessário cerca de um mês para que a cólera de Erika se abrandasse. Às nove e meia de uma das últimas noites de janeiro, ela telefonou.
— Então está mesmo disposto a continuar aí? — perguntou de supetão. O telefonema pegou Mikael tão de surpresa que de pronto não soube o que responder. Depois sorriu e estreitou o cobertor junto ao corpo.
— Oi, Ricky. Você também devia vir aqui experimentar.
— Por quê? Há algum atrativo particular em morar nesse fim de mundo?
— Acabo de escovar os dentes com água gelada. Isso faz minhas obturações berrarem.
— A culpa é toda sua. Mas confesso que aqui em Estocolmo também está fazendo um frio danado.
— Me conte as novidades.
— Perdemos dois terços dos nossos anunciantes fixos. Ninguém tem vontade de dizer claramente, mas...
— Eu sei. Guarde o nome de todos que pularam fora. Um dia faremos uma boa reportagem sobre eles.
— Micke... fiz uns cálculos e, se não conseguirmos novos anunciantes, afundaremos no outono. Simples assim.
— O vento vai mudar.
Ela deu uma risada cansada do outro lado da linha.
— Você não pode dizer uma coisa como essa e se contentar em ficar aí nesse inferno lapão.
— Não exagere, a aldeia lapônia mais próxima fica a mais de quinhentos quilômetros daqui.
Erika calou-se um momento e depois prosseguiu:
— Eu sei. Homem que é homem executa seu trabalho, patati, patatá, conheço bem essa história. Não estou pedindo que se justifique. Me desculpe por ter sido grossa e por não ter respondido aos seus telefonemas. Será que podemos recomeçar? Seria muita ousadia minha eu ir visitá-lo?
— Quando você quiser.
— Devo levar um fuzil para enfrentar os lobos?
— De jeito nenhum. Contrataremos alguns lapões com trenós puxados por cães. Quando você vem?
— Sexta-feira à tarde. Está bem?
De um momento para o outro, a vida pareceu infinitamente mais alegre para Mikael.
Com exceção do estreito caminho desobstruído até a porta, o terreno estava coberto por cerca de um metro de neve. Mikael olhou demoradamente a pá, pensando no que precisaria fazer, depois foi perguntar aos Nilsson se Erika podia estacionar o BMW na casa deles durante a permanência dela ali. Não havia problema. A garagem era ampla e eles até ofereceram um aquecedor de bloco para o motor.
Erika fez o trajeto à tarde e chegou por volta das seis. Os dois se olharam com certa reserva por alguns segundos e depois se estreitaram um nos braços do outro durante um tempo bem mais longo.
A não ser pela igreja iluminada, não havia muito o que ver na obscuridade do anoitecer. O supermercado Konsum e o Café Susanne já estavam fechando as portas. Eles se apressaram a entrar em casa. Enquanto Mikael preparava o jantar, Erika bisbilhotava todos os cantos, lançando comentários sobre os Rekordmagasinet dos anos 1950 e folheando os arquivos na saleta de trabalho. Jantaram costeletas de carneiro com batatas à la creme — muitas calorias — e beberam vinho tinto. Mikael tentou retomar o assunto, mas Erika não estava disposta a conversar sobre a Millennium. Em vez disso, falaram durante duas horas de si mesmos e das atividades de Mikael. Depois foram verificar se a cama era bastante larga para dois.
O terceiro encontro com o advogado Nils Bjurman fora cancelado, transferido e finalmente marcado para as cinco da tarde da mesma sexta-feira. Nas reuniões anteriores, Lisbeth Salander fora recebida por uma cinquentona perfumada de almíscar que funcionava como secretária. Desta vez, ela não estava presente e o advogado Bjurman exalava um leve cheiro de álcool. Ele fez sinal para Salander se sentar numa poltrona e ficou folheando distraidamente papéis até parecer de repente se dar conta da presença dela.
Seguiu-se um novo interrogatório. Ele indagou Lisbeth acerca de sua vida sexual, que ela considerava definitivamente um assunto privado, sem ter a menor intenção de discuti-lo com quem quer que fosse.
Depois do encontro, viu que havia conduzido mal a conversa. Silenciosa de início, evitara responder às perguntas dele, que interpretara aquilo como timidez, deficiência mental ou uma tentativa de dissimulação, enquanto a pressionava para obter respostas. Percebendo que ele não desistiria, dera respostas sumárias ou anódinas, do tipo que supunha combinar com seu perfil psicológico. Mencionou Magnus — descrito como um programador nerd da sua idade que se comportava como um gentleman com ela, que a levava ao cinema e às vezes para a cama. Magnus era pura ficção e foi tomando forma à medida que ela falava, mas Bjurman aproveitou o pretexto para traçar um mapa detalhado da vida sexual dela na hora seguinte. Com que frequência você faz amor? De tempo em tempo. Quem toma a iniciativa, você ou ele? Eu. Vocês usam preservativos? Claro — ela ouvira falar do HIV. Qual é a sua posição preferida? Geralmente de costas. Gosta de fazer sexo oral? Ei, espera aí... Já praticou sexo anal?