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A última vez em que tinham se visto fora em 1984, quando o acompanhou, com Birger, numa caça à lebre ao norte de Hedestad, para que Birger testasse um novo cão de caça — um hamilton stövare adquirido recentemente. Harald Vanger tinha setenta e três anos e ela fizera o possível para aceitar sua loucura, essa loucura que transformara sua infância num pesadelo e afetara toda a sua vida adulta.

Cecilia nunca fora tão frágil como naquela época. Seu casamento se desfizera três meses antes. Mulher que apanha do marido — expressão banal. Para ela, isso significava maus-tratos leves porém contínuos. Ameaças, bofetadas, empurrões, ser derrubada no chão da cozinha. As explosões do marido eram sempre inexplicáveis, mas os golpes nunca eram fortes o suficiente para feri-la a sério. Ele evitava bater nela com o punho, e ela se acostumou.

Até o dia em que Cecilia revidou e ele se descontrolou. No final, enlouquecido, ele a atacara com golpes de tesoura nas costas.

Arrependido e em pânico, conduziu-a ao hospital, onde inventou a história delirante de um acidente, que a equipe de emergência logo decifrou à medida que ele ia pronunciando as palavras. Ela sentiu-se envergonhada. Deram-lhe doze pontos de sutura e ficou dois dias no hospital. Então Henrik Vanger foi buscá-la e levou-a para a casa dele. Nunca mais falou com o marido.

Naquele dia ensolarado, três meses depois do fim do casamento, Harald Vanger estava bem-humorado, quase amável. Mas de uma hora para a outra, em pleno bosque, passou a insultar grosseiramente a filha, fazendo comentários vulgares sobre sua vida e seus hábitos sexuais, terminando por dizer que era natural que uma puta como ela não soubesse conservar um homem.

O irmão nem sequer reparou que as palavras do pai a atingiam como uma chicotada. Birger Vanger limitou-se a rir e a passar o braço em volta de seus ombros, tentando desanuviar a situação a seu modo, com um comentário do gênero Sabemos bem como são as mulheres. Deu uma piscadela para Cecilia e aconselhou Harald Vanger a ficar atento a uma pequena elevação do terreno.

Houve um segundo, um instante gélido, em que Cecilia olhou para o pai e o irmão com a consciência súbita de que trazia na mão uma espingarda de caça carregada. Fechou os olhos. Se não tivesse feito isso, teria levantado a arma e disparado os dois cartuchos. Sua vontade era matar o pai e o irmão. Mas abaixou a espingarda, girou os calcanhares e voltou ao lugar onde haviam estacionado o carro. Deixou-os ali e voltou sozinha para casa. Desse dia em diante, passou a falar com o pai só em raríssimas ocasiões, quando obrigada pelas circunstâncias. Negara-lhe acesso à sua casa e nunca ia vê-lo na casa dele.

Você arruinou a minha vida, pensou Cecilia Vanger. Arruinou a minha vida desde a infância.

Às oito e meia da noite, Cecilia Vanger pegou o telefone e pediu que Mikael Blomkvist fosse vê-la.

O dr. Nils Bjurman sofria um martírio. Seus músculos não respondiam, o corpo parecia paralisado. Não tinha certeza de haver perdido a consciência, mas estava desorientado e sem a menor lembrança do que havia acontecido. Quando recuperou lentamente o controle do corpo, viu que estava nu, deitado de costas na cama, com os punhos atados por algemas e as pernas dolorosamente afastadas. Tinha queimaduras no local onde os eletrodos haviam tocado seu corpo.

Lisbeth Salander trouxera a poltrona de vime para perto da cama e, com as botas em cima do colchão, esperava pacientemente, fumando um cigarro. Quando Bjurman tentou falar, ele percebeu que sua boca estava coberta por uma fita adesiva larga. Virou a cabeça. Ela havia aberto e esvaziado uma das gavetas da cômoda.

— Descobri seus brinquedinhos — disse Salander.

Brandiu um chicote e remexeu na coleção de objetos eróticos, mordaças e máscaras de borracha espalhadas no chão.

— Para que serve este treco? — E mostrou um enorme pênis anal. — Não, não tente falar, não estou entendendo o que você diz. Foi o que utilizou em mim na semana passada? Basta balançar a cabeça. — Ela se inclinou para ele, divertindo-se antecipadamente com a resposta.

Nils Bjurman sentiu um súbito calafrio de terror no peito e se descontrolou. Forçou as algemas. Ela assumiu o controle. Impossível. Estava impossibilitado de fazer o que quer que fosse quando Salander se inclinou e pôs o tampão anal entre suas nádegas.

— Não é assim que um sádico faz? — ela perguntou. — Gosta de enfiar coisas nas pessoas, não é verdade? — Fitou-o. O rosto dele era uma máscara inexpressiva. — Sem lubrificante, não é mesmo?

Bjurman urrou através da fita adesiva quando Lisbeth Salander afastou brutalmente suas nádegas e enfiou o tampão no lugar previsto.

— Pare de berrar — disse Lisbeth Salander imitando a voz dele. — Se não se comportar, serei obrigada a te punir.

Levantou-se e contornou a cama. Ele a acompanhou com o olhar... Merda, o que é isso? Lisbeth Salander havia trazido a tevê de tela grande da sala para o quarto. O aparelho de DVD estava no chão. Ela olhou para ele, sempre segurando o chicote na mão.

— Está prestando bastante atenção? — perguntou. — Não tente falar, basta balançar a cabeça. — Entende o que estou dizendo?

Ele assentiu com a cabeça.

— Certo. — Ela se inclinou para pegar sua mochila. — Reconhece isto? — Ele aquiesceu com a cabeça. — É a mochila que eu trazia quando vim te ver na semana passada. Peguei emprestada da Milton Security. — Ela abriu um zíper na parte inferior. — Aqui tem uma câmera digital. Você costuma assistir de vez em quando Insider na Tv3? Os repórteres sacanas utilizam uma mochila como esta para filmar cenas com uma câmera oculta.

Tornou a fechar a mochila.

— Deve estar se perguntando onde fica a objetiva. O detalhe está todo aí. Grande angular com fibra ótica. A lente parece um botão e está disfarçada na fivela da alça. Você deve estar lembrado que eu pus a mochila bem aqui, em cima desta mesa, antes que você começasse a me tocar. Tomei o cuidado de verificar se a objetiva estava dirigida para a cama.

Ela mostrou um DVD e a seguir o introduziu no aparelho. Depois virou a poltrona e se instalou de modo a poder ver a tela da tevê. Acendeu mais um cigarro e acionou o controle remoto. O advogado Bjurman viu-se abrindo a porta a Lisbeth Salander. Não sabe ler as horas?, ele perguntava, irritado.

Ela passou o DVD inteiro. O filme tinha noventa minutos de duração e terminou no meio de uma cena em que o dr. Bjurman, nu e encostado à cabeceira da cama, bebia um copo de vinho enquanto contemplava Lisbeth Salander estendida com as mãos atadas nas costas.

Ela desligou a tevê e continuou sentada na poltrona sem dizer nada por uns dez minutos e sem olhar para ele. Bjurman nem ousava se mexer. Ela se levantou, foi até o banheiro, depois voltou e sentou-se de novo na poltrona: Sua voz era como lixa.

— Cometi um erro na semana passada — disse. —Achei que mais uma vez seria obrigada a te chupar, o que é absolutamente nojento, mas não ultrapassa demais minhas capacidades. Achei que fosse obter, de modo muito tranquilo, provas inquestionáveis, evidentes, de como você é um canalha perverso e imundo. Eu o subestimei. Não percebi o quanto você é um sujeito podre e doente. Vou ser bem clara — ela continuou. — Esse filme mostra você estuprando uma jovem de vinte e quatro anos, retardada mental, da qual você é o tutor responsável. Com certeza você nem imagina o quanto posso ser retardada mental quando é necessário. Qualquer um que vir esse DVD vai entender que você não só é um lixo mas também um sádico louco furioso. Um filme bem instrutivo, não acha? Eu diria que você, e não eu, é que seria internado. Concorda comigo?