Cecilia corou. Evitou os olhos de Erika e foi até a cozinha a pretexto de fazer um café.
Era um dia quente e ensolarado de maio. A vegetação estava brotando e Mikael surpreendeu-se a assobiar Blossom time is coming.
Erika passou a noite no quarto de hóspedes de Henrik. Depois do jantar, Mikael perguntara a Cecilia se queria companhia. Ela respondeu que devia preparar a reunião dos conselhos de classe, que estava cansada e preferia ir dormir. Na segunda-feira de manhã bem cedo, Erika depositou um beijo no rosto de Mikael e partiu.
Quando Mikael foi para a prisão, em meados de março, a neve ainda cobria a paisagem. Agora as videiras já exibiam folhas e a relva em volta da casa verdejava, abundante. Pela primeira vez, ele tinha a oportunidade de passear pela ilha. Por volta das oito, passou na casa de Henrik para pedir uma garrafa térmica a Anna. Conversou um pouco com Henrik e pediu-lhe emprestado um mapa da ilha. Queria ver de perto a cabana de Gottfried, mencionada de maneira indireta no inquérito policial, pois Harriet estivera ali várias vezes. Henrik explicou que a cabana pertencia a Martin Vanger, mas estava desocupada havia vários anos. De vez em quando um parente de passagem a ocupava.
Mikael encontrou Martin Vanger a tempo, antes de ele ir para Hedestad trabalhar, e perguntou se podia emprestar a chave da cabana. Martin olhou para ele com um sorriso brincalhão.
— Suponho que a crônica familiar chegou agora ao capítulo sobre Harriet.
— Eu só queria dar uma olhada...
Martin Vanger foi buscar a chave e voltou em seguida.
— Posso ir então? Sem problemas?
— Por mim, pode até se instalar lá, se quiser. A não ser pelo fato de ficar no outro extremo da ilha, é um lugar bem melhor que a casa onde você está hospedado.
Mikael preparou café e sanduíches. Encheu uma garrafa com água e pôs as provisões numa mochila que jogou sobre o ombro. Seguiu um caminho estreito e em parte invadido pelo mato, ao longo da baía na costa norte da ilha. A cabana de Gottfried ficava num promontório a cerca de dois quilômetros do povoado, e ele fez o trajeto em meia hora, sem pressa.
Martin Vanger tinha razão. Ao sair de uma curva do caminho, Mikael viu abrir-se um lugar verdejante em frente ao mar, com uma ampla vista de Hedestad que abarcava a embocadura do rio, a marina à esquerda e o porto comercial à direita.
Achou surpreendente que ninguém tivesse se apossado da cabana de Gottfried. Era uma construção rústica de toras de madeira horizontais, coberta de telhas, com os caixilhos das janelas pintados de verde e uma pequena varanda na entrada. A manutenção da casa e do jardim mostrava sinais de abandono; a pintura das portas e das janelas estava descascando, e o que devia ter sido uma relva transformara-se em arbustos de um metro de altura. Seria necessário um dia de trabalho com foice e cortador de grama para pôr tudo em ordem.
Mikael destrancou a porta, entrou e abriu as janelas. Parecia o interior de um celeiro de uns trinta e cinco metros quadrados. Era uma única e grande peça, forrada de lambris, com amplas janelas que davam para o mar de um lado e de outro para a porta da frente. No fundo da peça, uma escada conduzia a um quarto-mezanino que ocupava metade da superfície da casa. Debaixo da escada havia um pequeno nicho com um fogão a gás, um balcão e um lavabo. A mobília era simples; à esquerda da entrada, um banco fixado à parede, uma escrivaninha em mau estado e uma ampla estante de madeira. Mais adiante, do mesmo lado, um armário de três portas. A direita da entrada, uma mesa redonda com cinco cadeiras de madeira e, no centro, uma lareira.
Várias lamparinas indicavam que a eletricidade não chegara até ali. No parapeito de uma janela descansava um velho transistor Grundig com a antena quebrada. Mikael acionou o botão on, mas as pilhas estavam gastas.
Subiu a escada estreita e deu uma espiada no mezanino: uma cama de casal, um colchão sem colcha, uma mesa-de-cabeceira e uma cômoda.
Mikael ficou um momento vasculhando a casa. A cômoda estava vazia, com exceção de algumas toalhas de rosto e roupas de cama cheirando a mofo. No armário havia algumas roupas de trabalho, um avental, um par de botas de borracha, um tênis gasto e uma pequena lamparina a querosene. Nas gavetas da escrivaninha encontrou papel, lápis, um bloco de desenho não usado, um baralho e alguns marcadores de página. O armário da cozinha continha louças, xícaras de café, copos, velas e pacotes esquecidos de sal, saquinhos de chá e coisas do gênero. Numa gaveta da mesa havia talheres.
Os únicos vestígios de caráter intelectual estavam na prateleira acima da escrivaninha. Mikael subiu numa cadeira para ver melhor. Na prateleira de baixo havia números antigos de Se, Rekordmagasinet, Tidsfördriv e Lektyr, do final dos anos 1950 e início dos 1960; Bildjoumalen de 1965 e 1966, Mitt Livs Novell e algumas revistas em quadrinhos: 91:an, Fantomen e Romans. Mikael abriu um número da Lektyr de 1964 e constatou que a pin-up tinha um aspecto relativamente inocente.
Uns cinquenta livros também, a metade deles romances policiais em formato de bolso da série Manhattan de Wahlström; alguns Mickey Spillane com títulos evocadores como O beijo da morte, nas capas clássicas de Bertil Hegland. Encontrou ainda seis Kitty, alguns Clube dos cinco de Enid Blyton e um volume dos Detetives gêmeos de Sivar Ahlrud — O mistério no metrô. Mikael sorriu com nostalgia. Três livros de Astrid Lindgren: Nós, os filhos de Bullerbyn, Super Blomkvist e Rasmus e Píppi Meialonga. Na prateleira de cima havia um rádio de ondas curtas, dois livros de astronomia, um sobre aves, um intitulado O império do mal, que falava da União Soviética, um sobre a guerra de inverno na Finlândia, o Catecismo de Lutero, o livro de hinos da Igreja sueca e uma Bíblia.
Mikael abriu a Bíblia e leu no interior da capa: Harriet Vanger, 12/5/1963. A Bíblia da crisma de Harriet. Consternado, devolveu o livro à estante.
Logo atrás da casa havia um pequeno depósito que abrigava lenha e ferramentas, uma foice, um ancinho, um martelo, uma caixa contendo pregos, uma plaina, uma serra e outras ferramentas. O sanitário estava situado a uns vinte metros para o Leste Europeu, no bosque. Mikael olhou um pouco por ali e depois voltou para a casa. Puxou uma cadeira, sentou-se na varanda e abriu a garrafa térmica para tomar café. Acendeu um cigarro e contemplou a baía de Hedestad através da cortina do matagal.
A cabana de Gottfried era bem mais modesta do que ele imaginara. Era esse então o lugar onde o pai de Harriet e de Martin se recolhera quando o casamento com Isabella começou a desmoronar no final dos anos 1950. Onde tinha ido viver e onde se embriagava. E mais abaixo junto ao pontão onde havia se afogado com uma taxa elevada de álcool no sangue. A vida na cabana certamente era agradável no verão, mas, quando a temperatura se aproximava do zero, devia ser bastante fria e penosa. De acordo com Henrik, Gottfried continuou a trabalhar no grupo Vanger — com interrupções nos períodos de auge da bebedeira — até 1964. O fato de morar nessa cabana de forma mais ou menos permanente e não obstante apresentar-se ao trabalho barbeado e de terno e gravata indicava, apesar de tudo, certa disciplina pessoal.
Mas também era um lugar aonde Harriet ia com frequência, tanto assim que foi um dos primeiros onde a procuraram. Henrik contou que no último ano ela tinha ido várias vezes à cabana, nos fins de semana ou nas férias. No último verão, havia morado ali durante três meses, embora fosse ao povoado todos os dias. Fora ali também que sua amiga Anita Vanger, irmã de Cecilia, lhe fizera companhia por seis semanas.