Mikael guardou a fotografia na mochila e foi a pé até a entrada da estação, onde sentou-se num terraço e pediu um caffè latte. Sentia-se subitamente agitado.
Nos romances policiais ingleses, isso se chamava uma new evidence, o que era bem mais que um "novo dado". Ele acabava de ver algo novo, que ninguém mais observara numa investigação que se arrastava havia trinta e sete anos.
O único problema é que ele não sabia muito bem qual o valor dessa nova descoberta, nem mesmo se havia algum. No entanto ela lhe parecia importante.
O dia de setembro em que Harriet desapareceu fora dramático de diversas maneiras. Era um dia de festa em Hedestad com milhares de pessoas nas ruas, tanto jovens como velhos. E havia a reunião familiar anual na ilha. Só esses dois acontecimentos já quebravam a rotina do lugar. E o acidente na ponte, como a cereja no bolo, veio lançar sua sombra sobre o resto.
O inspetor Morell, Henrik Vanger e todos os que refletiram sobre o desaparecimento de Harriet haviam se concentrado nos acontecimentos da ilha. O próprio Morell escrevera que não conseguia afastar a suspeita de que havia uma ligação entre o acidente e o desaparecimento de Harriet. De repente Mikael se convenceu de que isso era inteiramente falso.
A cadeia de incidentes não começara na ilha, mas na cidade de Hedestad, várias horas antes naquele dia. Harriet Vanger tinha visto alguma coisa ou alguém que lhe causara medo e que a fizera voltar para casa e procurar de imediato Henrik Vanger, que infelizmente não teve tempo de lhe dar atenção. Depois aconteceu o acidente na ponte. Em seguida o assassino agiu.
Mikael fez uma pausa. Era a primeira vez que formulava conscientemente a suposição de que Harriet havia sido morta. Hesitou, mas logo percebeu que concordava com a convicção de Henrik Vanger. Harriet fora morta e agora ele buscava um assassino.
Retornou ao inquérito policial. Nos milhares de páginas, só uma parte mínima falava das horas em Hedestad. Harriet estava com três colegas de classe, e todas foram interrogadas. Elas se encontraram na entrada da estação ferroviária às nove da manhã. Uma das meninas precisava comprar um jeans e as outras a acompanharam. Tomaram um café no restaurante das lojas EPA e depois foram até a feira na praça de esportes, onde passearam entre as bancas e os pequenos lagos com patos, e onde também cruzaram com outros colegas de escola. Ao meio-dia, dirigiram-se ao centro da cidade para ver o desfile da Festa das Crianças. Um pouco antes das duas, Harriet anunciou repentinamente que precisava voltar para casa. Elas se separaram num ponto de ônibus perto da rua da Estação.
Nenhuma das colegas observou algo fora do comum. Uma delas, Inger Stenberg, afirmou que Harriet se tornara "impessoal", ao descrever sua mudança no último ano. Disse que naquele dia Harriet estava taciturna como de costume e que apenas acompanhava as outras.
O inspetor Morell entrevistou todos os que tinham visto Harriet naquele dia, mesmo os que apenas a cumprimentaram na feira ou na rua. Sua foto foi publicada nos jornais da região quando a deram por desaparecida. Vários habitantes de Hedestad entraram em contato com a polícia para dizer que julgavam tê-la visto durante o dia, mas ninguém observou nada de incomum.
Mikael passou a noite refletindo sobre como continuar investigando a pista que acabava de formular. Na manhã seguinte, foi se encontrar com Henrik Vanger no momento em que ele tomava o café-da-manhã.
— Você me disse que a família Vanger sempre teve participações no Hedestads-Kuriren.
— Isso mesmo.
— Preciso consultar os arquivos fotográficos do jornal. De 1966. Henrik Vanger pousou o copo de leite e enxugou o lábio superior.
— Mikael, o que você descobriu? Ele olhou o velho bem nos olhos.
— Nada de concreto. Mas acho que podemos ter cometido um erro de interpretação no que se refere ao desenrolar dos acontecimentos.
Mostrou a foto e relatou suas conclusões; Henrik não disse nada por um longo tempo.
— Se tenho mesmo razão, devemos nos concentrar no que se passou em Hedestad naquele dia, não apenas no que se passou na ilha — disse Mikael. — Não sei o que foi feito delas depois de tantos anos, mas muitas fotografias das festividades certamente nem foram publicadas. São essas fotos que quero ver.
Henrik Vanger utilizou o telefone de parede na cozinha. Chamou Martin Vanger, explicou o que procurava e perguntou quem era hoje o responsável pelo arquivo fotográfico do Kuriren. Dez minutos mais tarde, a pessoa foi localizada e a autorização obtida.
A responsável pelo arquivo fotográfico do Hedestads-Kuriren chamava-se Madeleine Blomberg, mais conhecida por Maja, e tinha sessenta anos. Era a primeira mulher nessa função que Mikael encontrava em sua carreira, numa profissão em que ainda se julgava a fotografia como um domínio artístico reservado aos homens.
Era um sábado e a redação estava vazia, mas Maja Blomberg morava a apenas cinco minutos a pé dali e recebeu Mikael na porta do jornal. Ela havia trabalhado no Hedestads-Kuriren a maior parte de sua vida. Começou como revisora em 1964, a seguir trabalhou na preparação das fotos e passou muitos anos no laboratório, sendo enviada também para algumas coberturas fotográficas quando os efetivos faltavam. Acabou sendo promovida a editora e, dez anos antes, quando o ex-responsável pelo setor de fotografia se aposentou, ela assumiu a chefia do departamento. Mas isso não significava que dirigisse um vasto império. O departamento de fotografia fora integrado ao de publicidade dez anos antes e contava com apenas seis pessoas, todas encarregadas do mesmo trabalho por turno.
Mikael perguntou como os arquivos estavam organizados.
— Na verdade, o arquivo está uma grande bagunça. Depois dos computadores e das fotos digitais, passamos a arquivar tudo em CDs. Um dos nossos estagiários escaneou as fotos antigas importantes, mas isso só representa um ou dois por cento das fotos catalogadas. As mais antigas estão organizadas em arquivos de negativos, por data. Estão ou aqui na redação, ou no depósito.
— O que me interessa são as fotos tiradas no desfile da Festa das Crianças de 1966, mas também, de modo geral, fotos tiradas naquela semana.
Maja Blomberg perscrutou Mikael com o olhar.
— Não é a semana em que Harriet Vanger desapareceu?
— A senhora conhece a história?
— Impossível ter trabalhado a vida inteira no Hedestads-Kuriren e não conhecê-la, e quando Martin Vanger me chamou hoje de manhã, no meu dia de folga, tirei minhas próprias conclusões. Revisei artigos que falavam do caso nos anos 1960. Por que está investigando? Haveria novas revelações?
Maja Blomberg também parecia ter faro. Mikael balançou a cabeça com um breve sorriso e lançou seu pretexto.
— Não, e duvido muito que algum dia tenhamos a resposta para o que aconteceu com ela. Peço que não espalhe, mas estou escrevendo a biografia de Henrik Vanger. O desaparecimento de Harriet é um assunto à parte, mas também um capítulo que não se pode ignorar. Procuro fotos que possam ilustrar aquele dia, de Harriet e de suas colegas.
Maja Blomberg pareceu cética, porém como a explicação era plausível ela não tinha por que duvidar do que ele dizia.
O fotógrafo de um jornal utiliza em média entre dois e dez filmes por dia. Em épocas de grandes acontecimentos, esse número pode facilmente dobrar. Cada filme contém trinta e seis negativos, portanto não é incomum um jornal acumular mais de trezentas fotos todos os dias, das quais poucas são publicadas. Uma redação bem organizada divide os filmes em seis e põe cada tira dessas em seis envelopes numa página. Com isso, um filme equivale a mais ou menos uma página num arquivo de negativos. Um arquivo contém pouco mais de cento e dez filmes. Em um ano, acumulam-se entre vinte e trinta arquivos. Ao longo dos anos, isso acaba se transformando numa quantidade espantosa de arquivos, geralmente sem o menor valor comercial, atulhando as prateleiras da redação. No entanto, todos os fotógrafos e editores de fotografia estão convencidos de que as imagens representam um documento histórico de valor inestimável e não jogam nada fora.