— Como assim?
— Vi as citações na parede do seu quarto — ela disse. — Por que você foi procurar passagens tão sinistras? Um beijo. Tchau.
Ela acenou com a mão e entrou no trem. Perplexo, Mikael ficou na plataforma vendo o trem sumir em direção ao norte. O último vagão já desaparecia na curva quando finalmente o significado do comentário dela lhe aflorou à consciência, junto com uma sensação gelada no peito.
Mikael se precipitou para fora da estação e consultou as horas. Só haveria ônibus para Hedeby dali a quarenta minutos. Seus nervos não suportariam a espera. Correu até o ponto de táxi do outro lado da esplanada da estação e encontrou Hussein com seu sotaque carregado.
Dez minutos depois, Mikael pagava a corrida e entrava em sua saleta de trabalho. O pedaço de papel estava preso com durex acima da escrivaninha.
Olhou ao redor. Depois lembrou onde poderia encontrar uma Bíblia. Pegou o pedaço de papel, encontrou as chaves que deixara dentro de uma tigela na beirada da janela e correu até a cabana de Gottfried. Suas mãos estavam quase tremendo quando pegou a Bíblia de Harriet na prateleira.
Não eram números telefônicos que Harriet havia anotado. Os algarismos indicavam capítulos e versículos do Levítico, o terceiro livro do Pentateuco. Os castigos.
(Magda), Levítico, capítulo XX, versículo 16:
"Se uma mulher se aproximar de um animal para se prostituir com ele, será morta juntamente com o animal. Serão mortos e levarão a sua iniquidade."
(Sara), Levítico, capítulo XXI, versículo 9:
"Se a filha de um sacerdote se desonrar pela prostituição, ela desonra o pai; será
queimada no fogo."
(Rj), Levítico, capítulo I, versículo 12:
"A seguir a vítima será cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada sobre o fogo do altar."
(rl), Levítico, capítulo XX, versículo 27:
"Qualquer homem ou mulher que evocar os espíritos ou fizer adivinhações será
morto. Serão apedrejados e levarão a sua culpa."
(Mari), Levítico, capítulo XX, versículo 18:
"Se um homem dormir com uma mulher durante o tempo de sua menstruação e vir a sua nudez, descobrindo o seu fluxo e descobrindo-o ela mesma, serão ambos cortados do meio de seu povo."
Mikael saiu e sentou-se no patamar em frente à casa. Sem dúvida, era a isso que Harriet se referia quando anotou os algarismos na sua agenda de telefones. Cada citação estava cuidadosamente sublinhada na Bíblia de Harriet. Ele acendeu um cigarro e ficou escutando o canto dos pássaros.
Havia entendido os números, mas não os nomes: Magda, Sara, Mari, RJ e RL.
De repente, um abismo se abriu quando o cérebro de Mikael deu um salto intuitivo. Lembrou-se do sacrifício pelo fogo em Hedestad de que lhe falara o inspetor Gustav Morelclass="underline" o caso Rebecka nos anos 1940, a jovem violentada e assassinada. Para matá-la, haviam posto sua cabeça sobre carvões ardentes. "A seguir a vítima será cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada sobre o fogo do altar." Rebecka. RJ. Qual era o sobrenome dela?
Santo Deus! Com que história de gente maluca Harriet havia se metido?
Henrik Vanger adoecera e fora se deitar à tarde, explicaram a Mikael quando ele bateu à sua porta. Mesmo assim Anna o fez entrar e ele viu o velho durante alguns minutos.
— Um resfriado de verão — explicou Henrik, fungando. — O que o traz aqui?
— Uma pergunta.
— Diga.
— Ouviu falar de um assassinato cometido aqui em Hedestad nos anos 1940? Uma moça chamada Rebecka, que foi morta por terem posto sua cabeça numa lareira?
— Rebecka Jacobsson — disse Henrik sem hesitar um segundo. — Jamais vou esquecer esse nome, mas fazia anos que eu não ouvia ninguém mencioná-lo.
— Lembra como foi o assassinato?
— E como! Rebecka Jacobsson tinha vinte e três ou vinte e quatro anos quando foi morta. Isso deve ter acontecido... acho que foi em 1949. Houve um grande inquérito, no qual tive uma pequena participação.
— Você? — exclamou Mikael, surpreso.
— Sim. Rebecka Jacobsson trabalhava num dos escritórios do grupo Vanger. Uma moça bastante conhecida, e muito bonita. Mas por que essas perguntas sobre ela de repente?
Mikael não sabia bem o que dizer. Levantou-se e se aproximou da janela.
— Não sei exatamente, Henrik, talvez eu tenha descoberto alguma coisa, mas primeiro preciso refletir um pouco.
— Está querendo me dizer que existe uma ligação entre Harriet e Rebecka? Transcorreram... mais de dezessete anos entre os dois acontecimentos.
— Dê-me mais algum tempo para refletir. Voltarei amanhã, se você estiver melhor.
Mikael não encontrou Henrik Vanger no dia seguinte. Um pouco antes da uma da manhã, ainda estava sentado à mesa da cozinha lendo a Bíblia de Harriet, quando ouviu o ruído de um carro atravessando a ponte em alta velocidade. Olhou pela janela e viu a luz giratória azul de uma ambulância.
Tomado de um mau pressentimento, Mikael precipitou-se atrás da ambulância. Ela estacionara em frente à casa de Henrik. Havia luz no andar de baixo e Mikael logo percebeu que algo acontecera. Subiu depressa a escada da frente e deu de cara com Anna Nygren, muito perturbada no vestíbulo.
— O coração — ela disse. — Ele me chamou há pouco e se queixou de dor no peito. Depois desmaiou.
Mikael estreitou nos braços a leal governanta e ali permaneceu até que os enfermeiros descessem com um Henrik Vanger inconsciente numa padiola. Martin Vanger, visivelmente aflito, logo chegou. Já havia se deitado quando Anna o avisou; estava com os pés nus metidos num par de pantufas e com a braguilha aberta. Saudou Mikael brevemente e se voltou para Anna.
— Eu vou com ele para o hospital. Chame Birger e tente entrar em contato com Cecilia em Londres. E avise Dirch Frode.
— Posso ir até a casa de Frode — propôs Mikael. — Anna fez um sinal de agradecimento com a cabeça.
Bater à porta de alguém depois da meia-noite em geral significa más notícias, pensou Mikael ao pôr o dedo na campainha de Dirch Frode. Esperou vários minutos até que ele viesse abrir a porta, ainda sonolento.
— Tenho más notícias. Acabam de levar Henrik Vanger para o hospital. Parece que foi um infarto. Martin me pediu que eu viesse até aqui avisá-lo.
— Meu Deus — disse Frode. Consultou o relógio. — Hoje é sexta-feira 13 — acrescentou, com uma lógica incompreensível e um ar de perplexidade.
Mikael voltou para casa às duas e meia da manhã. Hesitou um instante, mas depois resolveu não telefonar para Erika naquele momento. Só por volta das dez da manhã, depois de falar brevemente com Dirch Frode pelo celular e de ficar sabendo que Henrik Vanger continuava vivo, é que chamou Erika para informar que o novo sócio da Millennium fora hospitalizado, vítima de um infarto. Como era de se esperar, seu anúncio foi recebido com tristeza e inquietação.
Mais tarde, Dirch Frode passou na casa de Mikael levando notícias detalhadas sobre o estado de saúde de Henrik.
— Ele está vivo, mas nada bem. Teve um infarto sério, agravado por uma espécie de infecção.
— Chegou a vê-lo?
— Não. Está na UTI. Martin e Birger estão com ele.
— Qual é o prognóstico?
Dirch Frode balançou a mão de um lado para o outro.
— Ele sobreviveu ao infarto, e isso é sempre um bom sinal. Seu estado geral de saúde é excelente, mas é um homem idoso. Só nos resta esperar.