— Não, obrigado. Vim à ilha só para trocar de roupa. Vou voltar agora à cidade para passar a noite com Eva.
Mikael esperou.
— Falei com Cecilia. Ela está um pouco perturbada, é muito apegada a Henrik. Espero que a perdoe se ela disse coisas... desagradáveis.
— Gosto muito de Cecilia — respondeu Mikael.
— Eu sei. Mas ela tem lá seus humores. Saiba apenas que Cecilia é totalmente contra você remexer no passado.
Mikael suspirou. Todo mundo em Hedestad parecia saber por que Henrik o contratara.
— E você?
Martin afastou as mãos num gesto de perplexidade.
— Há décadas Henrik está obcecado com essa história da Harriet. Não sei o que dizer... Harriet era minha irmã, mas de certo modo já está distante de mim. Dirch Frode me disse que você tem um contrato que somente Henrik pode romper. Considerando seu atual estado de saúde, creio que isso cause mais mal do que bem.
— E você, quer que eu continue?
— Descobriu alguma coisa?
— Desculpe, Martin, mas eu quebraria o contrato se lhe contasse alguma coisa sem a autorização de Henrik.
— Entendo. — Ele sorriu de repente. — Henrik gosta muito de conspirações, tem um monte de teorias a respeito, mas eu não gostaria que você lhe desse falsas esperanças.
— Fique tranquilo. A única coisa que apresento a ele são fatos que posso comprovar através de documentos.
— Bem... Aliás, por falar nisso, precisamos pensar também no outro contrato. Como Henrik está doente e impossibilitado de cumprir suas obrigações no conselho administrativo da Millennium, me ofereço para ficar no seu lugar.
Mikael esperou.
— Precisamos convocar uma reunião para avaliar a situação.
— É uma boa idéia, mas, pelo que entendi, a próxima reunião já foi marcada para agosto.
— Sim, mas talvez possamos antecipá-la. Mikael sorriu polidamente.
— Sem dúvida. Mas está falando com a pessoa errada. Por enquanto não faço parte do conselho administrativo da Millennium. Deixei a revista em dezembro e nada posso dizer sobre as decisões tomadas pelo conselho. Sugiro que converse com Erika Berger sobre isso.
Martin Vanger não esperava essa resposta. Refletiu um momento antes de se levantar.
— Tem razão, claro. Vou telefonar para ela. — Deu um tapinha no ombro de Mikael para se despedir e foi se encaminhando para o carro.
Mikael olhou para ele pensativamente. Nada de preciso fora dito, mas pairava no ar uma clara ameaça. Martin Vanger havia colocado a Millennium na balança. Um instante depois, Mikael serviu-se de uma nova dose de aquavita e voltou à sua leitura de Vai McDermid.
Por volta das nove da noite, o gato ruivo chegou e se esfregou em suas pernas. Ele o acariciou atrás das orelhas.
— É isso aí, meu velho. Vamos nos aborrecer juntos na noite de São João — disse.
Quando caíram as primeiras gotas de chuva, entrou para se deitar. O gato preferiu ficar lá fora.
Lisbeth Salander passou o Dia de São João fazendo uma boa revisão na sua Kawasaki. Uma moto de 125 cilindradas não era a máquina ideal, mas ela sabia conduzi-la e a reformara, peça por peça, inclusive ajustando-a para poder correr um pouco acima da velocidade autorizada.
À tarde, pôs o capacete e a jaqueta de couro e foi até a casa de saúde de Äppelviken, onde passou algumas horas com sua mãe no jardim. Saiu de lá com uma ponta de preocupação e com maus pressentimentos. A mãe parecia mais ausente do que nunca. Durante as três horas em que ficaram juntas, só trocaram umas poucas palavras, e sua mãe nem parecia saber com quem falava.
Mikael passou dias tentando identificar o carro com placa AC. Embora tenha ficado um pouco perdido no início, acabou encontrando um mecânico aposentado em Hedestad que identificou o veículo como um Ford Anglia, modelo aparentemente comum, do qual, porém, Mikael nunca tinha ouvido falar. Depois entrou em contato com um funcionário do Departamento de Trânsito, para ver se era possível conseguir uma relação de todos os Ford Anglia de 1966 com placa iniciada por AC3 alguma coisa. Estava tentando seguir outras pistas, quando veio a resposta de que um exame de registros até era possível, só que demoraria algum tempo por ser algo muito diferente do que se podia considerar como informação de interesse público.
Vários dias depois do fim de semana de São João, Mikael sentou-se ao volante do Volvo emprestado e pegou a rodovia E4 rumo ao norte. Dirigia sem pressa, como sempre. Pouco antes da ponte de Härnösand, parou para tomar um café na confeitaria de Vesterlund.
A parada seguinte foi Umea, onde pediu o prato do dia num hotel. Comprou um mapa rodoviário e prosseguiu até Skelleftea, entrando depois à esquerda em direção a Norsjö. Chegou por volta das seis da tarde e hospedou-se no hotel Norsjö.
Começou suas pesquisas logo cedo na manhã seguinte. Não existia nenhuma Marcenaria de Norsjö no anuário da cidade. A recepcionista desse pequeno hotel nos confins do norte, uma jovem de uns vinte anos, nunca ouvira falar dessa marcenaria.
— Quem poderia me informar?
Por um instante ela pareceu um pouco confusa, mas em seguida disse que ia telefonar para o pai. Dois minutos depois, voltou e explicou que a Marcenaria de Norsjö fechara no começo dos anos 1980. Se Mikael quisesse conversar com alguém que sabia um pouco mais sobre a empresa, devia procurar um tal de Hartman que trabalhara ali como contramestre e agora morava no bairro dos Girassóis.
Norsjö era um vilarejo nascido ao longo de uma rua que, muito apropriadamente, fora batizada de Rua Principal; os estabelecimentos comerciais atravessavam a localidade de ponta a ponta, enquanto as moradias ficavam nas ruas transversais. Na entrada do vilarejo havia uma pequena zona industrial e estrebarias; na saída, a oeste, erguia-se uma bela igreja de madeira. Mikael notou que a aldeia abrigava também uma congregação de missionários e uma de pentecostais. Um cartaz fixado num painel do ponto de ônibus falava de um Museu da Caça e de um Museu do Esqui. Outro anunciava que Veronika cantaria na Festa de São João. Ele percorreu o vilarejo de ponta a ponta, a pé, em pouco mais de vinte minutos.
O bairro dos Girassóis era um condomínio residencial situado a uns cinco minutos do hotel. Hartman não estava em casa. Eram nove e meia da manhã e ele supôs que o homem estivesse trabalhando ou saíra para fazer compras.
A etapa seguinte foi o armazém da Rua Principal. Quem mora em Norsjö deve passar, uma hora ou outra, no armazém, pensou Mikael. Havia dois vendedores; Mikael escolheu o mais velho, de uns cinquenta anos.
— Bom dia, estou procurando um casal que deve ter morado aqui em Norsjö nos anos 1960. O homem parece que trabalhava na marcenaria. Não sei como se chamavam, mas tenho aqui duas fotos deles, de 1966.
O vendedor olhou demoradamente as fotos, mas disse que não conhecia nem o homem nem a mulher.
Na hora do almoço, Mikael pediu um cachorro-quente no quiosque ao lado do ponto de ônibus. Depois das lojas, passou pela prefeitura, pela biblioteca, pela farmácia. Não havia ninguém na delegacia e ele começou a conversar ao acaso com pessoas mais velhas. Por volta das duas da tarde, abordou duas mulheres mais jovens que, mesmo não reconhecendo o casal da foto, lhe deram uma boa idéia.
— Se a foto foi tirada em 1966, essas pessoas devem ter hoje uns sessenta anos. Por que não vai até a Casa da Terceira Idade em Solbacka?
Mikael foi até lá e apresentou-se a uma mulher de uns trinta anos, explicando o que queria. Ela o olhou desconfiada, mas acabou cedendo. Acompanhou Mikael à sala de convivência, onde ele passou meia hora mostrando as fotos a um grande número de pensionistas de setenta anos ou mais. Apesar da amabilidade deles, ninguém identificou as pessoas fotografadas em Hedestad em 1966.
Por volta das cinco, retornou ao bairro dos Girassóis e dessa vez encontrou Hartman em casa. Ele e a mulher, ambos aposentados, haviam passado o dia fora. Fizeram-no entrar na cozinha, onde a mulher imediatamente foi preparar um café enquanto Mikael explicava o que procurava. Como nas outras tentativas do dia, não teve sorte. Hartman coçou a cabeça, acendeu o cachimbo e depois de um momento admitiu que não reconhecia as pessoas da foto. Marido e mulher falavam num dialeto local que Mikael às vezes tinha dificuldade em compreender. A mulher certamente quis dizer "cabelos encaracolados" quando comentou que a moça da foto tinha "knövelhära".