E permanecia, claro, a questão fundamentaclass="underline" havia uma ligação entre o assassinato de Rebecka em 1949, o de Magda Lovisa em 1960 e o desaparecimento de Harriet Vanger em 1966? Em caso afirmativo, como Harriet Vanger soube disso?
No sábado, Hartman acompanhou Mikael em um passeio sem muitas expectativas até Norsjö. De manhã, visitaram cinco ex-funcionários da marcenaria que moravam suficientemente perto um do outro para que pudessem ir a pé. Três moravam no centro e dois em Sörbyn, na periferia do vilarejo. Todos ofereceram café. Todos examinaram as fotos e sacudiram negativamente a cabeça.
Após um almoço trivial na casa dos Hartman, saíram de carro para mais uma volta. Foram a quatro aldeias nos arredores de Norsjö onde moravam outros ex-funcionários da marcenaria. A cada parada, Hartman era calorosamente recebido, mas ninguém foi capaz de ajudá-los. Mikael começava a se desesperar e a achar que a viagem a Norsjö não serviria para nada.
Por volta das quatro da tarde, Hartman estacionou o carro em frente a uma casa pintada de vermelho, típica do Västerbotten, em Norsjövallen, ao norte de Norsjö, e apresentou Mikael a Henning Forsman, marceneiro aposentado.
— Sim, é o filho de Assar Brännlund — disse Henning Forsman assim que Mikael mostrou a fotografia.
Bingo!
— E onde posso encontrá-lo?
— Esse rapaz? Bem, vai ter que cavar. Chamava-se Gunnar, morreu numa explosão em meados dos anos 1970.
Droga!
— Mas a mulher dele ainda está viva. É essa da foto. Chama-se Mildred e mora em Bjursele.
— Bjursele?
— Fica a uns dez quilômetros logo que se pega a estrada de Bastuträsk. Mora numa casinha vermelha à direita, na entrada na aldeia. A terceira casa. Conheço bem a família.
"Bom dia, meu nome é Lisbeth Salander. Estou fazendo uma tese de criminologia sobre a violência contra as mulheres no século XX e gostaria de saber se é possível passar no distrito policial de Landskrona para examinar documentos sobre um caso de 1957. Trata-se do assassinato de uma mulher de quarenta e cinco anos chamada Rakel Lunde. Por acaso sabe onde esses documentos podem estar hoje?"
Bjursele parecia uma publicidade viva da vida rural do Västerbotten. A aldeia era composta de umas vinte casas, relativamente próximas, que formavam um semicírculo na extremidade de um lago. No meio da aldeia havia um cruzamento com uma placa indicando Hemmingen, 11 km, e outra apontando para Bastuträsk, 17 km. Ao lado do cruzamento, uma pequena ponte cruzava um riacho que Mikael supôs ser o sele de Bjursele. Nessa época, em pleno verão, era tão bonito como um cartão-postal.
Mikael estacionou no pátio de um supermercado Konsum definitivamente fechado, do outro lado da estrada, a pouca distância da terceira casa à direita. Quando bateu à porta, ninguém atendeu.
Andou durante uma hora pela estrada de Hemmingen. Passou num lugar onde o riacho se transformava numa torrente impetuosa, viu dois gatos e uma cabra antes de retornar, mas nenhum ser humano. A porta de Mildred Brannlund continuava fechada.
Num poste junto à ponte, um pequeno cartaz convidava para assistir ao BTCC, o Bjursele Tukting Car Championship 2002. Mikael olhou pensativamente para o cartaz. Tukt a car parecia ser uma distração de inverno que consistia em conduzir um veículo sobre o lago gelado até arrebentá-lo.
Esperou até as dez da noite antes de desistir e retornar a Norsjö, onde jantou tarde e recolheu-se para terminar de ler o policial de Vai McDermid.
Um final abominável.
* * *
Às dez da noite, Lisbeth Salander acrescentou outro nome à lista de Harriet Vanger. Fez isso com muita hesitação, depois de refletir por horas.
Ela descobrira um atalho. Regularmente eram publicados artigos sobre crimes não solucionados, e no suplemento de um jornal vespertino topou com um artigo de 1999 intitulado "Matadores de mulheres continuam em liberdade". O artigo era conciso, mas trazia os nomes e as fotos de várias vítimas que fizeram correr muita tinta. O caso Solveig em Norrtälje, o assassinato de Anita em Norrköping, o de Margareta em Helsingborg e uma série de outros mistérios.
Os casos mais antigos datavam dos anos 1960 e nenhum dos crimes figurava na lista que Mikael passara a Lisbeth. No entanto, um deles chamou sua atenção.
Em junho de 1962, uma prostituta de trinta e dois anos, Lea Persson, de Göteborg, foi a Uddevalla para visitar sua mãe e seu filho de nove anos de quem a mãe tinha a guarda. Alguns dias depois, Lea abraçou a mãe, despediu-se e partiu para pegar o trem de volta a Göteborg. Foi encontrada dois dias depois atrás de um contêiner abandonado num terreno baldio industrial. Fora violentada e seu corpo sofrera sevícias particularmente brutais.
O assassinato de Lea foi objeto de várias matérias folhetinescas na imprensa, mas o culpado jamais foi identificado. O nome Lea não estava na lista de Harriet Vanger e nenhuma das citações bíblicas correspondia a esse crime.
Contudo, um detalhe muito bizarro levantou as antenas de Lisbeth Salander. A cerca de dez metros do local onde o corpo de Lea foi encontrado, descobriram um vaso de flores com um pombo dentro. Alguém pusera um cordão em volta do pescoço do pombo e o puxara pelo buraco no fundo do vaso. Depois, o vaso foi colocado sobre um pequeno fogo entre dois tijolos. Nada provava que essa crueldade com o animal tivesse relação com o assassinato de Lea; talvez apenas crianças se divertindo dessa maneira ignóbil. Na imprensa, porém, o caso ficou conhecido como "O crime do pombo".
Lisbeth Salander não lia a Bíblia — nem mesmo possuía uma —, mas no fim da tarde foi até a igreja de Högalid e, depois de insistir um pouco, emprestaram-lhe uma Bíblia. Ela se instalou num banco no adro da igreja e leu o Levítico. Ao chegar ao capítulo XII, versículo 8, levantou as sobrancelhas. O capítulo XII falava da purificação da mulher que deu à luz:
"Se as suas posses não lhe permitirem trazer um cordeiro, ela tomará duas rolas ou dois pombinhos, um para o holocausto e outro para o sacrifício pelo pecado. O sacerdote fará por ela a expiação e ela será purificada."
Lea poderia perfeitamente ter figurado na lista de Harriet Vanger como Lea 31208.
De repente Lisbeth Salander percebeu que as investigações que fizera até então não possuíam, nem de longe, as dimensões de sua atual missão.
Mildred Brännlund, que voltara a se casar e agora tinha o nome Berggren, atendeu Mikael Blomkvist quando ele bateu à sua porta às dez horas da manhã do domingo. Com quarenta anos a mais, a mulher parecia ter engordado também uns quarenta quilos. Mas Mikael a reconheceu de imediato.
— Bom dia, meu nome é Mikael Blomkvist. É Mildred Berggren, imagino.
— Sim, sou eu.
— Desculpe incomodá-la, mas há algum tempo venho tentando encontrá-la por causa de um assunto bastante difícil de explicar. — Mikael sorriu. — Será que posso entrar e tomar um pouquinho do seu tempo?
Como o marido de Mildred e seu filho de trinta e cinco anos estavam em casa, sem muita hesitação ela convidou Mikael a entrar e a se sentar na cozinha. Mikael bebera mais café do que nunca nos últimos dias, mas sabia que uma recusa, no Norrrland, seria uma descortesia. Quando as xícaras foram postas na mesa, Mildred sentou-se e perguntou, muito curiosa, o que podia fazer por ele. Como Mikael não compreendia bem seu dialeto de Norsjö, ela passou a falar no sueco de Estocolmo.
Mikael respirou fundo.
— E uma longa e estranha história. Em setembro de 1966, a senhora estava em Hedestad com seu marido, na época Gunnar Brännlund.
Ela parecia estupefata. Ele esperou até que ela assentisse com a cabeça e depois colocou na mesa a foto tirada na rua da Estação.
— E então tiraram essa foto. Lembra-se da ocasião?