Ele clicou num arquivo chamado harriet/bd-19.eps.
Lisbeth entendeu a decepção dele. Era uma foto em plano geral, bastante mal enquadrada, mostrando os palhaços no desfile da Festa das Crianças. Ao fundo via-se o canto da loja Sundström. Umas dez pessoas apareciam na calçada em frente à loja.
Mikael apontou com o dedo.
— Acho que foi este o sujeito que ela viu. Primeiro, porque tentei calcular o que ela via baseando-me no rosto dela e na direção para a qual ele estava voltado; fiz um desenho exato do local. Depois, porque ele é a única pessoa que parece olhar diretamente para a máquina fotográfica, ou seja, para Harriet.
Lisbeth viu uma figura imprecisa um pouco recuada atrás dos espectadores, na rua transversal. Vestia uma jaqueta escura com um tom diferente nos ombros, vermelho, e uma calça escura, provavelmente um jeans. Mikael ampliou a imagem para que a figura ocupasse toda a tela a partir da cintura. A imagem ficou ainda mais imprecisa.
— É um homem. Mede cerca de um metro e oitenta, corpulência normal. Cabelos castanho-claros, não muito curtos, sem barba. Mas é impossível distinguir as feições ou mesmo calcular a idade. Pode ser tanto um adolescente quanto um quinquagenário.
— Podemos retocar a foto...
— Já retoquei. Inclusive enviei uma cópia a Christer Malm da Millennium, que é um craque em tratamento de imagens. — Mikael clicou em outra foto. — O que vemos aqui é o que se pode obter de melhor. O problema é que a máquina fotográfica é muito ruim e a distância muito grande.
— Mostrou essa foto a alguém? As pessoas podem reconhecer a atitude...
— Mostrei a Dirch Frode. Ele não tem a menor idéia de quem possa ser.
— Dirch Frode não é o cara mais esperto de Hedestad.
— Mas é para ele e para Henrik que eu trabalho. Quero mostrar a foto a Henrik antes de fazê-la circular.
— Talvez seja apenas um simples espectador.
— É possível. Mas nesse caso ele soube provocar uma reação bem estranha em Harriet.
Na semana seguinte, Mikael e Lisbeth trabalharam no caso Harriet praticamente o tempo todo. Lisbeth continuou lendo o inquérito e fez uma série de perguntas às quais Mikael tentou responder. Só podia haver uma verdade e as respostas pouco claras, os dados equívocos os levavam a aprofundar a discussão. Passaram um dia inteiro verificando os horários das pessoas durante o acidente na ponte.
Lisbeth Salander deixava Mikael cada vez mais perplexo. Embora percorresse superficialmente os textos do inquérito, ela parecia deter-se nos detalhes mais obscuros e incompatíveis.
Eles faziam uma pausa à tarde, quando o calor os impedia de continuar no jardim. Várias vezes foram tomar banho no canal ou beber alguma coisa no Café Susanne. Susanne passou a olhar Mikael com uma frieza ostensiva. Ele se deu conta de que Lisbeth parecia mais jovem do que era e estava hospedada em sua casa, o que aos olhos de Susanne o transformava num velho safado que gosta de menininhas. Era desagradável.
Mikael continuava praticando jogging todos os fins de tarde. Lisbeth não fazia nenhum comentário sobre esses exercícios quando ele voltava ofegante para casa. Correr não era bem a idéia que ela fazia de um lazer de verão.
— Passei dos quarenta — disse Mikael. — Sou obrigado a fazer exercício para não engordar.
— Ah!
— Não pratica nenhuma atividade física?
— Um pouco de boxe de vez em quando.
— Boxe?
— Sim, sabe, com luvas.
Mikael foi tomar banho e tentou imaginar Lisbeth num ringue. Ela talvez estivesse zombando dele. Uma pergunta se impunha.
— Você boxeia em que categoria de peso?
— Em nenhuma. Sirvo de sparring para uns rapazes de um clube de boxe de Söder.
Por que será que eu não me surpreendo?, pensou Mikael. Mas ele constatou que, de qualquer modo, ela acabava de contar alguma coisa sobre si. Ele continuava sem nenhuma informação sobre ela; por que começara a trabalhar para Armanskij, qual era a sua formação ou o que faziam seus pais. Assim que Mikael tentava conversar sobre a vida privada dela, Lisbeth se fechava como uma ostra e respondia por monossílabos ou o ignorava totalmente.
Uma tarde, Lisbeth Salander depositou na mesa um arquivo e olhou para Mikael com uma ruga entre as sobrancelhas.
— O que sabe sobre Otto Falk? O pastor.
— Muito pouco. Encontrei o pastor atual, uma mulher, algumas vezes na igreja no começo do ano. Ela disse que Falk ainda está vivo, mas numa casa de saúde em Hedestad. Alzheimer.
— De onde ele é?
— Daqui, de Hedestad. Estudou em Uppsala e aos trinta anos retornou.
— Ele não era casado. E Harriet o via.
— Por que está perguntando isso?
— Apenas notei que o tira, esse Morell, foi bastante indulgente com ele nos interrogatórios.
— Nos anos 1960, os pastores ainda gozavam de um outro status social. Era natural que ele quisesse morar aqui na ilha, mais perto do poder, digamos assim.
— Fico me perguntando se os policiais realmente revistaram o presbitério. As fotos mostram que era uma grande construção de madeira; lá devia haver muitos lugares onde esconder um corpo por algum tempo.
— É verdade. Mas nada indica que ele tenha tido alguma ligação com assassinatos em série ou com o desaparecimento de Harriet.
— Você se engana — disse Lisbeth com um sorriso no canto dos lábios. — Em primeiro lugar, ele era um pastor, e os pastores, mais do que ninguém, possuem uma relação especial com a Bíblia. Em segundo, foi o último a ter visto Harriet e falado com ela.
— Mas ele foi correndo ao local do acidente e permaneceu ali várias horas. É visto em muitas fotos, sobretudo durante o lapso de tempo em que Harriet deve ter desaparecido.
— Pfff, posso desmontar esse álibi num instante! Mas eu estava pensando em outra coisa. Estamos diante de um matador de mulheres sádico.
— E?
— Eu fui... eu tive um tempo livre na primavera passada e pesquisei coisas sobre sádicos num contexto bem diferente. Um dos documentos que li era um manual do FBI americano que afirmava que um número impressionante de assassinos seriais capturados vêm de lares problemáticos e na infância se comprazem em torturar animais. Além disso, muitos serial killers americanos foram presos por incêndios criminosos.
— Sacrifício de animais e sacrifício pelo fogo, é isso que está querendo dizer?
— Sim. Os animais torturados e o fogo constam em vários casos registrados por Harriet. Mas eu pensava mais no presbitério, que foi incendiado no final dos anos 1970.
Mikael refletiu por um momento.
— É muito vago — disse por fim. Lisbeth balançou a cabeça.
— Concordo. Mas vale a pena anotar. Não encontrei nada no inquérito sobre a causa do incêndio e gostaria muito de saber se houve outros incêndios misteriosos nos anos 1960. Seria interessante também descobrirmos sobre se houve casos de crueldade com animais ou amputações de animais nessa época, na região.
Quando Lisbeth foi se deitar na sétima noite em Hedeby, ela estava um pouco irritada com Mikael Blomkvist. Durante uma semana, estivera praticamente todos os minutos do dia com ele, quando em geral sete minutos na companhia de qualquer pessoa bastavam para fazê-la ter dor de cabeça.
Fazia tempo ela constatara que as relações sociais não eram o seu forte e se preparara para uma vida solitária. Sentia-se perfeitamente satisfeita quando as pessoas a deixavam em paz. Mas as pessoas não eram muito perspicazes e compreensivas, o que sempre a obrigava a prevenir-se contra autoridades sociais, autoridades de proteção da infância e da comissão de tutelas, contra o fisco, contra a polícia, curadores, psicólogos, psiquiatras, professores e seguranças que nunca queriam deixá-la entrar nas boates, embora já tivesse vinte e cinco anos (com exceção dos seguranças da Moulin, que a conheciam). Havia todo um exército de gente que parecia não ter mais o que fazer a não ser tentar comandar a sua vida e, se possível, mudar o modo como ela escolhera viver.