— O Doces disse que o amo tinha de beber água — disse, na sua melhor lamúria.
— O Doces pode ir foder-se. Foi feito para isso. Também não recebemos ordens desse anormal.
Pois não, pensou Tyrion. Mesmo entre escravos havia senhores e camponeses, como depressa aprendera. O hermafrodita era há muito o animal de estimação do amo, estragado com mimos e favorecido, e os outros escravos do nobre Yezzan odiavam-no por isso.
Os soldados estavam habituados a receber ordens dos amos e dos capatazes. Mas o Amasseca estava morto, e Yezzan encontrava-se demasiado doente para nomear um sucessor. E quanto aos três sobrinhos, esses corajosos homens livres haviam-se lembrado de assuntos urgentes longe dali assim que tinham começado a soar os cascos da égua branca.
— A á-água — disse Tyrion, com servilismo. — Água do rio não, disse o curandeiro. Água limpa e doce, do poço.
Cicatriz soltou um grunhido.
— Ide vós buscá-la. E despachai-vos.
— Nós? — Tyrion trocou um olhar impotente com Centava. — A água é pesada. Nós não somos tão fortes como vós. Podemos... podemos levar a carroça das mulas?
— Levai as vossas pernas.
— Teremos de fazer uma dúzia de viagens.
— Fazei uma centena de viagens. Estou-me a cagar.
— Só nós dois... não conseguiremos carregar toda a água de que o amo precisa.
— Leva o teu urso — sugeriu o Cicatriz. — Não presta para mais nada além de carregar água.
Tyrion recuou.
— É como dizeis, amo.
O Cicatriz sorriu. Amo. Oh, ele gostou disto.
— Morgo, traz as chaves. E tu enche os baldes e volta logo, anão. Sabes o que acontece a escravos que tentam fugir.
— Traz os baldes — disse Tyrion a Centava. Foi com o tal Morgo tirar Sor Jorah Mormont da sua jaula.
O cavaleiro não se adaptara bem à escravidão. Quando era chamado para fazer de urso e levar a bela donzela, mostrara-se carrancudo e pouco cooperante, arrastando-se sem vida pelo que tinha de fazer nas ocasiões em que sequer se dignava participar no espetáculo. Apesar de não ter tentado escapar nem respondido com violência aos seus captores, era mais frequente ignorar as ordens, ou responder com pragas resmungadas, do que obedecer-lhes. Nada disso deixara o Amasseca divertido, o qual tornara claro o seu desagrado confinando Mormont a uma jaula de ferro e mandando espancá-lo todas as noites quando o Sol se afundava na Baía dos Escravos. O cavaleiro absorvia os espancamentos em silêncio; os únicos sons eram as pragas resmungadas dos escravos que o espancavam e as batidas surdas das mocas contra a pele pisada e maltratada de Sor Jorah.
O homem é uma casca, pensou Tyrion, da primeira vez que viu o grande cavaleiro a ser espancado. Devia ter controlado a língua e deixado que Zahrina ficasse com ele. Podia ter sido um destino mais suave do que este.
Mormont saiu do acanhado confinamento da jaula dobrado e a olhar de viés, com os olhos negros e as costas cobertas com uma crosta de sangue seco. Tinha a cara tão pisada e inchada que mal parecia humano. Estava nu, à exceção de uma tanga, um bocado imundo de trapo amarelo.
— Vais ajudar a carregar água — disse-lhe Morgo.
A única resposta de Sor Jorah foi um olhar carrancudo. Há homens que prefeririam morrer livres a viver como escravos, suponho. O próprio Tyrion não fora atacado por tal enfermidade, felizmente, mas se Mormont assassinasse Morgo, os outros escravos talvez não fizessem essa distinção.
— Vinde — disse, antes de o cavaleiro fazer alguma coisa corajosa e estúpida. Afastou-se a bambolear-se, na esperança de que Mormont o seguisse.
Os deuses foram bons, para variar. Mormont seguiu-o.
Dois baldes para Centava, dois para Tyrion e quatro para Sor Jorah, dois em cada mão. O poço mais próximo ficava a sul e a oeste da Prostituta, pelo que partiram nessa direção, fazendo cantar alegremente as campainhas nas suas coleiras a cada passo. Ninguém lhes prestou a mínima atenção. Eram apenas escravos a ir buscar água para o seu amo. Usar uma coleira conferia certas vantagens, em particular se se tratasse de uma coleira dourada com o nome de Yezzan zo Qaggaz nela escrito. O tinir daquelas pequenas campainhas proclamava o seu valor perante qualquer um que tivesse ouvidos. Um escravo tinha apenas a importância do seu amo; Yezzan era o homem mais rico da Cidade Amarela, e trouxera seiscentos soldados escravos para a guerra, mesmo que se parecesse com uma monstruosa lesma amarela e cheirasse a mijo. As coleiras davam-lhes autorização para irem onde desejassem no interior do acampamento.
Até que Yezzan morra.
Os Senhores dos Tinidos tinham os seus soldados escravos a treinar no campo de treinos mais próximo. O tinir das correntes que os prendiam fazia uma desagradável música metálica enquanto marchavam pela areia em passo acertado e formavam com as suas longas lanças. Noutro local, equipas de soldados estavam a erguer rampas de pedra e areia por baixo das manganelas e balistas, inclinando-as para cima, para o céu, a fim de melhor defenderem o acampamento no caso de o dragão negro regressar. Vê-los a suar e a praguejar enquanto empurravam as pesadas máquinas para as rampas fez o anão sorrir. Viam-se também muitas bestas. Um em cada dois homens parecia ter uma nas mãos, com uma aljava cheia de dardos pendurada da anca.
Se alguém se tivesse lembrado de lhe perguntar, Tyrion podia ter-lhes dito para não se incomodarem com aquilo. A menos que algum daqueles longos dardos de ferro das balistas calhasse acertar num olho, não era provável que o monstro de estimação da rainha fosse abatido por tais brinquedos. Os dragões não são assim tão fáceis de matar. Se lhe fizerdes cócegas com isso, só o ireis deixar zangado.
Era nos olhos que um dragão era mais vulnerável. Nos olhos e no cérebro por trás deles. Não no baixo-ventre, como certas velhas lendas diziam. As escamas eram aí precisamente tão duras como as do dorso e flancos de um dragão. E pela garganta abaixo também não. Isso era uma loucura. Aqueles aspirantes a matadores de dragões, já agora, também podiam tentar apagar um incêndio com uma estocada de lança. "A morte sai pela boca de um dragão," escrevera o Septão Barth na sua História Não-Natural, "mas a morte não entra por aí."
Mais à frente, duas legiões de Nova Ghis enfrentavam-se, muralha de escudos contra muralha de escudos, enquanto sargentos com as cabeças cobertas por meios elmos de ferro com cristas de crina de cavalo gritavam ordens no seu incompreensível dialeto. A olho nu, os ghiscariotas pareciam mais formidáveis do que os soldados escravos yunkaitas, mas Tyrion cultivava dúvidas. Os legionários podiam estar armados e organizados da mesma forma que os Imaculados... mas os eunucos não conheciam outra vida, ao passo que os ghiscariotas eram cidadãos livres que serviam por períodos de três anos.
A fila para o poço estendia-se ao longo de um quarto de milha.
Só havia uma mancheia de poços a um dia de marcha de Meereen, portanto a espera era sempre longa. A maior parte da hoste yunkaita tirava a sua água de beber do Skahazadhan, o que Tyrion já sabia ser péssima ideia mesmo antes do aviso do curandeiro. Os espertos tinham o cuidado de ficar a montante das latrinas, mas continuavam a estar a jusante da cidade.
O facto de haver bons poços a um dia de marcha da cidade só provava que Daenerys Targaryen ainda era uma inocente no que tocava às artes de cerco. Ela devia ter envenenado todos os poços. Assim, todos os yunkaitas estariam a beber do rio. Ver-se-ia quanto tempo duraria o cerco nesse caso. Tyrion não duvidava de que seria isso o que o senhor seu pai teria feito.