De todas as vezes que davam mais um passo, as campainhas nas coleiras tilintavam vivamente. É um som tão feliz que me dá vontade de arrancar os olhos a alguém com uma colher. Por aquela altura Griff, o Pato e o Semimeistre deviam estar em Westeros com o seu jovem príncipe. Eu devia estar com eles... mas não, tinha de ter uma rameira. Matar parentes não era suficiente, precisava de cona e vinho para selar a minha ruína, e aqui estou do lado errado do mundo, a usar uma coleira de escravo com campainhazinhas douradas a anunciar a minha chegada. Se dançar mesmo da maneira certa talvez consiga fazer soar "As Chuvas de Castamere."
Não havia melhor lugar para ouvir as últimas notícias e boatos do que em volta do poço.
— Eu sei o que vi — estava a dizer um velho escravo com uma ferrugenta coleira de ferro quando Tyrion e Centava avançaram fila fora — e vi aquele dragão a arrancar braços e pernas, a partir homens ao meio, a queimá-los até os fazer em cinza e ossos. As pessoas desataram a fugir, tentando sair daquela arena, mas eu tinha ido ver um espetáculo e, por todos os deuses de Ghis, foi o que vi. Estava lá em cima no púrpura, de modo que não achei que o dragão me fosse arranjar problemas.
— A rainha subiu para cima do dragão e voou — insistiu uma mulher alta e castanha.
— Tentou — disse o velho — mas não se conseguiu agarrar. As bestas feriram o dragão, e segundo ouvi dizer a rainha foi atingida mesmo entre as lindas tetas cor-de-rosa. Foi nessa altura que caiu. Morreu na sarjeta, esmagada debaixo das rodas de uma carroça. Conheço uma rapariga que conhece um homem que a viu morrer.
Naquela companhia, o silêncio era a maior parte da sabedoria, mas Tyrion não conseguiu conter-se.
— Não foi encontrado nenhum cadáver — disse.
O velho franziu o sobrolho.
— Que sabes tu disso?
— Eles estavam lá — disse a mulher castanha. — São eles, os anões combatentes, aqueles que justaram para rainha.
O velho semicerrou os olhos, como que a vê-lo e a Centava pela primeira vez.
— Fostes vós que montastes os porcos.
A nossa fama precede-nos. Tyrion esboçou uma vénia cortês, e absteve-se de fazer notar que um dos porcos era na verdade um cão.
— A porca que montei é na verdade minha irmã. Temos o mesmo nariz, não vês? Um feiticeiro enfeitiçou-a, mas se lhe deres um grande beijo húmido ela transforma-se numa bela mulher. A pena é que, depois de a conheceres, vais querer voltar a beijá-la para que volte a ser porca.
Romperam gargalhadas a toda a volta deles. Até o velho se lhes juntou.
— Então viste-a — disse o rapaz ruivo atrás deles. — Viste a rainha. É tão linda como dizem?
Vi uma rapariga esguia com cabelo prateado enrolada num tokar, podia ter-lhes dito Tyrion. Tinha a cara velada, e não cheguei a aproximar-me o suficiente para a ver bem. Estava a montar um porco. Daenerys Targaryen estivera sentada no camarote do dono ao lado do seu rei ghiscariota, mas os olhos de Tyrion tinham sido atraídos para o cavaleiro de armadura branca e dourada que estava a seu lado. Apesar de ter as feições ocultas, o anão teria reconhecido Barristan Selmy em qualquer lado. Illyrio tinha razão sobre isso, pelo menos, lembrava-se de ter pensado. Mas irá Selmy reconhecer-me? E que fará se reconhecer?
Quase revelara a sua identidade ali e naquele momento, mas algo o impedira; cautela, cobardia, instinto, chamai-lhe o que quiserdes. Não conseguia imaginar Barristan, o Ousado, a acolhê-lo com outra coisa que não fosse hostilidade. Selmy nunca aprovara a presença de Jaime na sua preciosa Guarda Real. Antes da rebelião, o velho cavaleiro julgara-o demasiado novo e insuficientemente experimentado; depois, tinha sido ouvido a dizer que o Regicida devia trocar aquele manto branco por um negro. E os seus crimes eram piores. Jaime matara um louco. Tyrion trespassara com um dardo as virilhas do seu próprio progenitor, um homem que Sor Barristan conhecera e servira durante anos. Podia ter arriscado mesmo assim, mas nessa altura Centava dera-lhe uma pancada no escudo e o momento passara, para nunca regressar.
— A rainha viu-nos justar — estava Centava a dizer aos outros escravos da fila — mas foi só nessa altura que a vimos.
— Deveis ter visto o dragão — disse o velho.
Gostaria de o ter visto. Os deuses nem sequer lhe tinham concedido essa mercê. Enquanto Daenerys Targaryen levantava voo, o Amasseca estava a prender ferros em volta dos tornozelos dos anões, para se assegurar de que não tentariam fugir no caminho de regresso para junto do seu amo. Se ao menos o capataz se tivesse retirado depois de os ter entregado no matadouro, ou se tivesse fugido como o resto dos esclavagistas quando o dragão descera do céu, os dois anões podiam ter-se afastado, livres. Ou fugido, o mais certo, com as nossas campainhinhas a retinir.
— Houve um dragão? — disse Tyrion, com um encolher de ombros. — Tudo o que sei é que não foram encontradas rainhas mortas.
O velho não estava convencido.
— Ah, encontraram cadáveres às centenas. Arrastaram-nos para a arena e queimaram-nos, apesar de metade já estarem esturricados. Se calhar não a reconheceram, queimada, ensanguentada e esmagada. Se calhar reconheceram mas decidiram dizer que não, para vos manter, aos escravos, calmos.
— Nós, os escravos? — disse a mulher castanha. — Tu também usas uma coleira.
— A coleira de Ghazdor — vangloriou-se o velho. — Conheço-o desde que nasceu. Sou quase como um irmão para ele. Escravos como tu, o refugo de Astapor e Yunkai, lamuriam-se acerca de serem livres, mas eu não daria a minha coleira à rainha dos dragões nem mesmo se ela se oferecesse para me mamar a pica por ela. O homem que tem o amo certo está melhor.
Tyrion não discutiu com cie. A coisa mais insidiosa na servidão era a facilidade com que as pessoas se habituavam a ela. Parecia-lhe que a vida da maioria dos escravos não era assim tão diferente da vida de um criado em Rochedo Casterly. Sim, alguns donos de escravos e os seus capatazes eram brutais e cruéis, mas o mesmo se podia dizer de alguns senhores de Westeros e dos seus intendentes e beleguins. A maior parte dos yunkaitas tratavam os escravos com bastante decência, desde que executassem as suas tarefas e não causassem problemas... e aquele velho com a coleira ferrugenta, com a sua feroz lealdade ao Lorde Bochechas de Baloiço, seu amo, não era nem um pouco atípico.
— Ghazdor, o de Grande Coração? — disse Tyrion, com simpatia. — O nosso amo Yezzan falou frequentemente na sua inteligência. — O que Yezzan realmente dissera andara mais perto de: Eu tenho mais inteligência na nádega esquerda do que Ghazdor e os irmãos têm entre todos. Achou prudente omitir as palavras realmente proferidas.
O meio dia chegou e partiu antes de ele e Centava chegarem ao poço, de onde um escravo escanzelado e perneta tirava água. Olhou-os desconfiado e de viés.
— É sempre o Amasseca que vem buscar a água de Yezzan, com quatro homens e uma carroça de mulas. — Voltou a deixar cair o balde no poço. Ouviu-se um suave chapinhar. O perneta deixou que o balde se enchesse e depois começou a içá-lo. Os seus braços estavam queimados pelo sol e a pelar, tinham um ar descarnado, mas eram só músculo.
— A mula morreu — disse Tyrion. — O Amasseca também, pobre homem. E agora o próprio Yezzan montou a égua branca, e seis dos seus soldados estão de caganeira. Podes-me dar dois baldes cheios?
— Como queiras. — Aquilo foi o fim das conversas de circunstância. O que estás a ouvir são cascos? A mentira sobre os soldados pôs o velho perneta a mexer-se muito mais depressa.
Voltaram para trás, com cada um dos anões a transportar dois baldes cheios de água doce até à borda, e Sor Jorah com dois baldes em cada mão. O dia estava a ficar mais quente, o ar tornava-se denso e húmido como lã molhada, e os baldes pareciam ir ficando mais pesados a cada passo. Uma longa caminhada em cima de pernas curtas. A água sacolejava nos baldes a cada passo, esparrinhando em volta das pernas, enquanto as campainhas tocavam uma canção de marcha. Se eu soubesse que daria nisto, pai, talvez te tivesse deixado vivo. A meia milha para leste, uma coluna escura de fumo estava a erguer-se de onde uma tenda fora incendiada. A queimar os mortos da noite passada.