Novos portões robustos tinham sido erguidos primeiro, para substituir os que haviam sido queimados. Depois, o telhado caído do Grande Salão fora removido e um novo construído à pressa no seu lugar. Depois do trabalho concluído, Lorde Bolton enforcara os trabalhadores. Fiel à palavra dada, mostrara misericórdia para com eles e não esfolara nem um.
Por essa altura, o resto do exército dos Bolton chegara. Içaram o veado e leão do Rei Tommen por cima das muralhas de Winterfell enquanto o vento uivava de norte, e por baixo içaram o homem esfolado do Forte do Pavor. Theon chegara na coluna de Barbrey Dustin, com sua senhoria, os seus recrutas de Vila Acidentada e a futura noiva. A Senhora Dustin insistira que devia ser sua a guarda da Senhora Arya até ao momento em que se casasse, mas agora esse tempo chegara ao fim. Ela agora pertence a Ramsay.
Proferiu as palavras. Através daquele casamento, Ramsay seria Senhor de Winterfell. Enquanto Jeyne tivesse o cuidado de não o enfurecer, ele não devia ter motivo para lhe fazer mal. Arya. O nome dela é Arya.
Mesmo dentro de luvas forradas de peles, as mãos de Theon tinham
começado a latejar de dor. Eram frequentemente as mãos que mais lhe doíam, em especial os dedos que lhe faltavam. Teria realmente havido uma altura em que mulheres ansiavam pelo seu toque? Fiz de mim Príncipe de Winterfell, pensou, e foi daí que veio tudo isto. Julgara que os homens cantariam sobre ele durante cem anos, e que contariam histórias sobre a sua ousadia. Mas se alguém falava dele agora era como Theon Vira-Mantos, e as histórias que contavam referiam-se à sua traição. Isto nunca foi o meu lar.
Eu aqui fui um refém. Lorde Stark não o tratara com crueldade, mas a longa sombra de aço da sua espada sempre estivera entre ambos. Ele foi bom para mim, mas nunca foi caloroso. Sabia que um dia podia ter de me condenar à morte.
Theon manteve os olhos no chão enquanto atravessava o pátio, ziguezagueando entre as tendas. Aprendi a combater neste pátio, pensou, lembrando-se de dias quentes de verão passados à espadeirada com Robb e Jon Snow sob os olhos vigilantes do velho Sor Rodrik. Isso acontecera quando estava completo, quando podia agarrar no cabo de uma espada tão bem como qualquer homem. Mas o pátio também continha memórias mais sombrias. Fora ali que reunira o povo dos Stark na noite em que Bran e Rickon tinham fugido do castelo. Ramsay era então o Cheirete, a seu lado, a sugerir-lhe em sussurros que devia esfolar alguns dos cativos para os obrigar a dizer-lhe para onde os rapazes tinham ido. Não haverá aqui esfolamentos enquanto eu for Príncipe de Winterfell, respondera Theon,
mal sonhando quão curto se revelaria o seu domínio. Nenhum deles quis ajudar-me. Conheci-os a todos durante metade da minha vida, e nem um deles quis ajudar-me. Mesmo assim, fi zera o que pudera para os proteger, mas depois de Ramsay pôr de lado a cara de Cheirete, matara todos os homens e os nascidos no ferro de Theon também. Incendiou-me o cavalo. Fora essa a última coisa que vira no dia em que o castelo caíra: o Sorridente a arder, as chamas a saltar-lhe da crina enquanto se empinava, escoiceando, gritando, de olhos brancos de terror. Aqui, precisamente neste pátio.
As portas do Grande Salão ergueram-se na sua frente; acabadas de fazer, para substituir as que tinham ardido, pareceram-lhe toscas e feias, tábuas em bruto unidas à pressa. Um par de lanceiros guardava-as, encurvados e a tremer sob espessos mantos de peles, com as barbas cobertas de gelo. Olharam Theon com ressentimento quando este coxeou pela escada acima, empurrou a porta da direita e deslizou para dentro.
O salão estava abençoadamente quente e brilhante com luz de archotes, e nunca o vira mais repleto de gente. Theon deixou-se inundar pelo calor, após o que se dirigiu para a parte dianteira do salão. Homens sentavam-se muito juntos nos bancos, tão apertados que os servidores tinham de se contorcer para passar entre eles. Até os cavaleiros e senhores acima do sal beneficiavam de menos espaço do que era habitual.
Lá em cima, perto do estrado, Abel estava a dedilhar o alaúde e a cantar “Belas Donzelas do Verão.” Chama a si próprio bardo. A verdade é que é mais proxeneta que bardo. O Lorde Manderly trouxera músicos de Porto Branco, mas nenhum era cantor, de modo que quando Abel aparecera aos portões com um alaúde e seis mulheres, fora bem recebido.
— Duas irmãs, duas filhas, uma esposa e a minha velha mãe — afirmara o cantor, embora nem uma se parecesse com ele. — Algumas dançam, algumas cantam, uma toca flauta e um tambor. Também são boas lavadeiras.
Bardo ou proxeneta, a voz de Abel era razoável, e tocava decentemente. Ali, entre as ruínas, ninguém esperava mais.
Ao longo das paredes pendiam os estandartes: as cabeças de cavalo dos Ryswell em ouro, castanho, cinzento e negro, o gigante rugidor da Casa Umber, a mão de pedra da Casa Flint do Dedo de Pederneira, o alce de Boscorno e o tritão de Manderly, o machado de batalha negro de Cerwyn e os pinheiros de Tallhart. Mas as suas cores brilhantes não conseguiam cobrir por completo as paredes enegrecidas que se estendiam por trás, nem as tábuas que fechavam os buracos onde em tempos tinham estado janelas.
Mesmo o telhado estava errado, com os seus novos madeiros em bruto, claros e brilhantes, onde as velhas vigas tinham estado, manchadas quase até ficarem negras por séculos de fumo.
Os maiores estandartes encontravam-se por trás do estrado, onde o lobo gigante de Winterfell e o homem esfolado do Forte do Pavor pendiam por trás da noiva e do noivo. Ver o estandarte dos Stark atingiu Theon com mais força do que esperara. Errado, é errado, tão errado como os olhos dela. As armas da Casa Poole eram um prato azul em fundo branco enquadrado por uma bordadura cinzenta. Eram essas as armas que deviam ter pendurado.
— Theon Vira-Mantos — disse alguém quando ele passou. Outros homens viraram as caras ao vê-lo. Um cuspiu. E porque não? Ele era o traidor que tomara Winterfell à traição, que matara os irmãos adotivos, que entregara a sua própria gente para ser esfolada em Fosso Cailin, e que entregara a irmã adotiva na cama do Lorde Ramsay. Roose Bolton podia usá-lo, mas os verdadeiros nortenhos deviam desprezá-lo.
Os dedos em falta no pé esquerdo tinham-no deixado com um passo complicado e desajeitado, cómico de se ver. Ouviu uma mulher rir-se atrás de si. Mesmo ali, no cemitério meio congelado que era aquele castelo, rodeado de neve, gelo e morte, havia mulheres. Lavadeiras. Essa era a maneira bem educada de dizer seguidora de acampamentos, e esta era a forma bem educada de dizer rameira.
De onde elas vinham, Theon não saberia dizer. Pareciam simplesmente aparecer, como larvas num cadáver ou corvos após uma batalha.
Todos os exércitos as atraíam. Algumas eram rameiras endurecidas capazes de foder vinte homens numa noite e beber com eles até os deixarem a todos cegos. Outras pareciam inocentes como donzelas, mas esse era só um truque do ofício. Algumas eram noivas de acampamento, ligadas aos soldados que seguiam por palavras murmuradas a um ou a outro deus, mas condenadas a serem esquecidas quando a guerra terminasse. Aqueciam a cama de um homem à noite, remendavam os buracos nas suas botas de manhã, cozinhavam-lhe o jantar ao chegar o crepúsculo, e pilhavam o seu cadáver após a batalha. Algumas até lavavam um pouco. Com elas costumavam vir filhos bastardos, criaturas imundas e desgraçadas nascidas num acampamento ou noutro. E mesmo gente como esta troçava de Theon Vira-Mantos. Elas que riam. O seu orgulho perecera ali em Winterfell; não havia lugar para tal coisa nas masmorras do Forte do Pavor. Depois de se conhecer o beijo de uma faca de esfolar, uma gargalhada perde todo o poder para nos ferir.
O nascimento e o sangue conferiam-lhe um lugar no estrado, na ponta da mesa elevada, junto a uma parede. À sua esquerda estava sentada a Senhora Dustin, como sempre vestida de lã negra, severa no corte e sem adornos. À sua direita não se sentava ninguém. Têm todos medo que a desonra se lhes transmita. Se se atrevesse, ter-se-ia rido.