— ... amante da rainha — concluiu Sor Barristan, antes que o cavaleiro dornês pudesse dizer alguma coisa que manchasse a honra da rainha. — É isso que lhes chamam em Dorne, não é? — Não esperou por uma resposta. — O Príncipe Lewyn foi meu Irmão Ajuramentado. Nesses tempos havia poucos segredos entre os membros da Guarda Real. Eu sei que ele tinha uma amante. Não sentia que houvesse nisso alguma vergonha.
— Pois não — disse Quentyn, ruborizado — mas...
— Daario mataria Hizdahr num piscar de olhos, se se atrevesse — prosseguiu Sor Barristan. — Mas não com veneno. Nunca. E em todo o caso, Daario não estava aqui. Mesmo assim, Hizdahr ficaria satisfeito por culpá-lo pelos gafanhotos... mas o rei pode ainda vir a ter necessidade dos Corvos Tormentosos, e perdê-los-á se parecer ser cúmplice na morte do seu capitão. Não, meu príncipe. Se Sua Graça precisar de um envenenador, olhará para vós. — Dissera tudo o que podia dizer em segurança. Dentro de mais alguns dias, se os deuses lhes sorrissem, Hizdahr zo Loraq já não governaria Meereen... mas nada de bom resultaria de ter o Príncipe Quentyn apanhado no banho de sangue que aí vinha. — Se tiverdes de permanecer em Meereen, faríeis bem em ficar longe da corte e esperar que Hizdahr vos esqueça — concluiu Sor Barristan — mas um navio para Volantis seria mais sensato, meu príncipe. Seja qual for o rumo que escolherdes, desejo-vos sorte.
Antes de se afastar três passos, Quentyn Martell chamou-o.
— Chamam-vos Barristan, o Ousado.
— Alguns chamam. — Selmy conquistara aquele nome com dez anos de idade, logo após ter-se tornado escudeiro, mas já tão vaidoso, orgulhoso e insensato que metera na cabeça que era capaz de justar com cavaleiros testados e experimentados. Portanto levara emprestado um cavalo de guerra e algum aço do armeiro do Lorde Dondarrion, e entrara na liça em Portonegro como cavaleiro mistério. Até o arauto se riu. Os meus braços eram tão magros que quando baixei a lança tive dificuldade em evitar que a ponta se espetasse no chão. O Lorde Dondarrion estaria no seu direito de o arrancar de cima do cavalo e de lhe dar uma surra, mas o Príncipe das Libélulas apiedara-se do desmiolado rapaz da armadura mal ajustada e concedera-lhe o respeito de aceitar o desafio. Uma arremetida fora o bastante. Depois, o Príncipe Duncan ajudara-o a levantar-se e tirara-lhe o elmo.
— Um rapaz — proclamara para a multidão. — Um rapaz ousado. — Há cinquenta e três anos. Quantos dos homens que estiveram lá em Portonegro continuarão vivos?
— Que nome julgais que me darão se eu regressar a Dorne sem Daenerys? — perguntou o Príncipe Quentyn. — Quentyn, o Cauteloso? Quentyn, o Cobarde? Quentyn, o Titubeante?
O Príncipe Que Chegou Tarde Demais, pensou o velho cavaleiro... mas se um cavaleiro da Guarda Real aprende alguma coisa, é a dominar a língua.
— Quentyn, o Sensato — sugeriu, e esperou que fosse verdade.
O PRETENDENTE DESPREZADO
A hora dos fantasmas já quase chegara quando Sor Gerris Drinkwater regressou à pirâmide, para relatar que encontrara o Feijões, o Livros e o Velho Bill Bone numa das adegas menos respeitáveis de Meereen, a beber vinho amarelo e a ver escravos nus matarem-se uns aos outros com mãos vazias e dentes afiados.
— O Feijões puxou de uma arma e propôs uma aposta para determinar se os desertores tinham barrigas cheias de lodo amarelo — relatou Sor Gerris — portanto atirei-lhe um dragão e perguntei-lhe se ouro amarelo serviria. Ele mordeu a moeda e perguntou o que eu pretendia comprar. Quando lhe disse, guardou a faca e perguntou se estávamos bêbados ou loucos.
— Ele que pense o que quiser, desde que entregue a mensagem — disse Quentyn.
— Isso fará. Aposto que também vais ter o teu encontro, mesmo que só para que o Farrapos possa mandar a Linda Meris cortar-te o fígado e fritá-lo com cebolas. Devíamos dar ouvidos a Selmy. Quando Barristan, o Ousado, te diz para fugir, um homem sensato ata as botas. Devíamos arranjar navio para Volantis enquanto o porto continua aberto.
Bastou mencionar a ideia para pôr a cara de Sor Archibald verde.
— Mais navios, não. Preferia voltar para Volantis a pé-coxinho.
Volantis, pensou Quentyn. Depois Lys, depois a pátria. De volta pelo
caminho de vinda, de mãos vazias. Três homens corajosos mortos, e para quê?
Seria bom voltar a ver o Sangueverde, visitar Lançassolar e os Jardins de Água e respirar o limpo e agradável ar de montanha de Paloferro em vez dos humores quentes, húmidos e imundos da Baía dos Escravos. Quentyn sabia que o pai não diria uma palavra de censura, mas o desapontamento estaria nos seus olhos. A irmã mostrar-se-ia desdenhosa, as Serpentes de Areia troçariam dele com sorrisos cortantes como espadas, e o Lorde Yronwood, o seu segundo pai, que enviara o próprio filho para o manter em segurança...
— Não vos manterei aqui — disse Quentyn aos amigos. — O meu pai atribuiu-me a mim esta tarefa, não a vós. Ide para casa, se é isso que quereis. Por quaisquer meios que quiserdes. Eu fico.
O grandalhão encolheu os ombros.
— Então o Drinque e eu também ficamos.
Na noite seguinte, Denzo D'han apareceu à porta do Príncipe Quentyn para discutir termos.
— Ele encontra-se convosco amanhã, junto do mercado de especiarias. Procurai uma porta marcada com um lótus púrpura. Batei duas vezes e gritai pela liberdade.
— De acordo — disse Quentyn. — Arch e Gerris estarão comigo. Ele também pode trazer dois homens. Mais não.
— Se aprouver ao meu príncipe. — As palavras eram bastante educadas, mas o tom de Denzo estava orlado de malícia, e os olhos do poeta guerreiro brilhavam de troça.
— Vinde ao pôr-do-sol. E tratai de não serdes seguidos.
Os dorneses abandonaram a Grande Pirâmide horas antes do pôr-do-sol, para o caso de virarem no sítio errado e terem dificuldade a encontrar o lótus púrpura. Quentyn e Gerris levaram os cinturões das espadas. O grandalhão levou o martelo de guerra pendurado das costas largas, a tiracolo.
— Ainda não é tarde demais para abandonar esta loucura — disse Gerris, enquanto desciam por uma viela fétida na direção do velho mercado de especiarias. Havia um cheiro a mijo no ar, e ouviram o trovejar das rodas reforçadas a ferro de uma carroça de transporte de cadáveres mais à frente. — O Velho Bill Bone dizia que a Linda Meris era capaz de fazer a morte de um homem demorar uma volta de lua. Nós mentimos-lhes, Quent. Usámo-los para chegar cá, e depois passámo-nos para os Corvos Tormentosos.
— Como nos foi ordenado.
— Mas o Farrapos nunca quis que o fizéssemos a sério — argumentou o grandalhão. — Os outros rapazes dele, Sor Orson e o Dick Straw, Hungerford, o Will dos Bosques, esse grupo, ainda estão numa masmorra qualquer graças a nós. O velho Farrapos não pode ter gostado lá muito disso.
— Pois não — disse o Príncipe Quentyn — mas gosta de ouro.
Gerris riu-se.
— É uma pena que não tenhamos nenhum. Confias nesta paz, Quent? Eu não. Metade da cidade está a chamar herói ao matador de dragões e a outra metade cospe sangue quando ouve mencionar o nome dele.
— Harzu — disse o grandalhão.
Quentyn franziu o sobrolho.
— O nome dele era Harghaz.
— Hizdahs, Humzum, Hagnag, que interessa? Eu chamo-lhes a todos Harzu. Não era nenhum matador de dragões. A única coisa que fez foi ficar com o traseiro esturricado e estaladiço.
— Era corajoso. — Teria eu tido a coragem de enfrentar aquele monstro sem nada além de uma lança?
— O que queres dizer é que morreu corajosamente.