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Quando por fim o dia chegou a Bravos, chegou cinzento, escuro e encoberto. A rapariga tivera esperança de nevoeiro, mas os deuses ignora­ram as suas preces, como tão frequentemente os deuses faziam. O ar estava límpido e frio, e o vento vinha desagradável e mordente. Um bom dia para uma morte, pensou. Sem ser chamada, a prece veio-lhe aos lábios. Sor Gregor, Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. Articulou os nomes em silêncio. Na Casa do Preto e do Branco nunca se sabia quem poderia estar à escuta.

As caves estavam cheias de roupa velha, trajes obtidos daqueles que vinham para a Casa de Preto e Branco beber a paz do tanque do templo. Tudo podia sei lá encontrado, desde farrapos de pedinte até ricas sedas e veludos. Uma rapariga feia deve vestir-se com roupa feia, decidiu, portanto escolheu um manto castanho manchado e puído na bainha, uma bolorenta túnica verde que cheirava a peixe e um par de botas pesadas. Por último, escamoteou a faca digital.

Não havia pressa, pelo que decidiu dar a volta longa até ao Porto Púr­pura. Atravessou a ponte que levava à Ilha dos Deuses. A Gata dos Canais vendera amêijoas e mexilhões entre os templos que aí havia, sempre que a filha de Brusco, Talea, estava com o sangue de lua e ficava de cama. Quase esperou ver Talea a vender lá naquele dia, talvez à porta da Coelheira onde todos os pequenos deuses esquecidos tinham os seus pequenos santuários abandonados, mas isso era uma patetice. O dia estava demasiado frio, e Talea nunca gostara de acordar tão cedo. A estátua à porta do santuário da Senhora Chorosa de Lys estava a chorar lágrimas prateadas quando a rapa­riga feia por ela passou. Nos Jardins de Gelenei estava uma árvore dourada com trinta metros de altura e folhas de prata martelada. Luz de archotes cintilava por trás de janelas de vitral no palácio de madeira do Senhor da Harmonia, mostrando meia centena de espécies de borboletas em todas as suas vivas cores.

A rapariga lembrou-se de que uma vez a Mulher do Marinheiro fi­zera com ela a sua ronda e lhe contara histórias sobre os mais estranhos deuses da cidade.

— Aquela é a casa do Grande Pastor. O Trios de três cabeças tem aquela torre com três torreões. A primeira cabeça devora os moribundos, e os renascidos emergem da terceira. Não sei que utilidade tem a cabeça do meio. Aquelas são as Pedras do Deus Silencioso, e ali está a entrada para o Labirinto do Criador de Padrões. Só aqueles que aprenderem a percorrê-lo como deve ser encontrarão o caminho para a sabedoria, se­gundo dizem os sacerdotes do Padrão. Ali por trás, junto do canal, é o templo de Aquan, o Touro Vermelho. A cada décimo terceiro dia, os sa­cerdotes cortam a garganta de um bezerro branco puro e oferecem tigelas de sangue a pedintes.

Aquele não era um décimo terceiro dia, aparentemente; os degraus do Touro Vermelho estavam vazios. Os deuses irmãos Semosh e Selloso sonhavam em templos gémeos de lados opostos do Canal Negro, ligados por uma ponte de pedra esculpida. A rapariga atravessou aí e dirigiu-se às docas, após o que atravessou o Porto do Trapeiro e passou pelos coruchéus e cúpulas meio afundados da Cidade Afogada.

Um grupo de marinheiros lisenos saía a cambalear do Porto Feliz quando passou por lá, mas a rapariga não viu nenhuma das rameiras. O Navio estava fechado e abandonado, e a sua trupe de saltimbancos estava sem dúvida ainda na cama. Mas mais à frente, no molhe ao lado de um baleeiro ibbenês, viu Tagganaro, velho amigo da Gata, a atirar uma bola para trás e para a frente com Casso, Rei das Focas, enquanto o seu mais recente carteirista trabalhava por entre a multidão de espetadores. Quan­do parou para ver e escutar por um momento, Tagganaro deitou-lhe uma olhadela vazia de reconhecimento, mas Casso ladrou e bateu as barbatanas. Ele reconhece-me, pensou a rapariga, ou então cheira o peixe. Apressou-se a seguir caminho.

Quando chegou ao Porto Púrpura, o velho estava aninhado dentro da venda de sopas na sua mesa habitual, contando uma bolsa de moedas enquanto regateava com o capitão de um navio. O guarda alto e magro pai­rava por cima dele. O baixo e gordo estava sentado perto da porta, de onde teria uma boa vista de qualquer pessoa que entrasse. Não importava. Ela não tencionava entrar. Em vez disso empoleirou-se no topo de um pilar de madeira a vinte metros de distância, enquanto o vento tempestuoso lhe puxava pelo manto com dedos fantasmagóricos.

Mesmo num dia frio e cinzento como aquele, o porto era um sítio movimentado. Viu marinheiros à caça de rameiras, e rameiras à caça de marinheiros. Um par de espadachins passou por ela, vestidos de roupa fina e amarrotada, apoiados um no outro enquanto iam cambaleando ebriamente ao longo das docas, com as espadas a retinir à ilharga. Um sacerdote vermelho passou apressadamente, com as vestes escarlates e carmesins a esvoaçar ao vento.

Era quase meio-dia quando viu o homem que queria ver, um próspe­ro armador que já por três vezes vira a negociar com o velho. Grande, ca­reca e entroncado, usava um pesado manto de sumptuoso veludo castanho enfeitado com peles, e um cinto de couro castanho ornamentado com luas e estrelas de prata. Um azar qualquer deixara-lhe uma perna hirta. Cami­nhava lentamente, apoiado numa bengala.

Serviria tão bem como qualquer outro e melhor do que a maioria, decidiu a rapariga feia. Saltou de cima do pilar e pôs-se a segui-lo. Uma dúzia de passos deixaram-na mesmo atrás dele, com a faca digital a postos. A bolsa do homem estava do lado direito, ao cinto, mas o manto estava no caminho. A lâmina saltou, suave e rapidamente, um profundo corte através do veludo, e o homem nada sentiu. O Roggo Vermelho teria sorrido ao ver aquilo. Enfiou a mão na abertura, abriu a bolsa com a faca digital, encheu o punho de ouro...

O grandalhão virou-se.

—   Que...

O movimento enredou-lhe o braço nas dobras do manto na altura em que ela estava a tirar a mão para fora. Choveram moedas em volta dos pés de ambos.

—  Ladra! — O grandalhão levantou a bengala para lhe bater. Ela fê-lo perder o apoio na perna boa com um pontapé, afastou-se a dançar e desa­tou a correr enquanto ele caía, passando a grande velocidade por uma mu­lher com um filho. Mais moedas caíram de entre os seus dedos e saltitaram pelo chão. Gritos de "ladra, ladra" ressoaram vindos de trás. Um estalaja­deiro com barriga de caldeirão que ia a passar fez uma tentativa desajeitada de lhe agarrar no braço, mas ela girou em volta dele, passou num piscar de olhos por uma rameira que ria à gargalhada e precipitou-se para a viela mais próxima.

A Gata dos Canais conhecera aquelas vielas, e a rapariga feia lem­brava-se disso. Precipitou-se para a esquerda, saltou sobre um muro baixo, pulou um pequeno canal e esgueirou-se por uma porta não trancada para dentro de um armazém poeirento. 'Iodos os sons de perseguição já se ti­nham sumido por essa altura, mas era melhor ter a certeza. Encolheu-se por trás de uns caixotes e esperou, envolvendo os joelhos com os braços. Passou a maior parte de uma hora à espera, após o que decidiu que era seguro ir-se embora, trepou a parede exterior do edifício e seguiu pelos te­lhados quase até ao Canal dos Heróis. Por aquela altura, o armador teria já apanhado as moedas e a bengala e seguido a coxear até à venda das sopas. Podia estar a beber uma tigela de caldo quente naquele preciso momento, queixando-se ao velho da rapariga feia que tentara roubar-lhe a bolsa.