O homem amável esperava-a na Casa de Preto e Branco, sentado à beira do tanque do templo. A rapariga feia sentou-se a seu lado e pousou uma moeda na borda do tanque entre ambos. Era de ouro, com um dragão de um lado e um rei do outro.
— O dragão de ouro de YVesteros — disse o homem amável. — E como foi que arranjaste isto? Nós não somos ladrões.
— Não foi roubo. Tirei uma das dele, mas deixei-lhe uma das nossas.
O homem amável compreendeu.
— E com essa moeda e as outras que levava na bolsa, ele pagou a um certo homem. Pouco depois o coração desse homem cedeu. E assim? Muito triste. — O sacerdote pegou na moeda e atirou-a ao tanque. — Tens mais que muito a aprender, mas pode ser que haja esperança para ti.
Nessa noite devolveram-lhe a cara de Arya Stark.
Também lhe trouxeram uma veste, a suave e grossa veste de um acólito, negra de um lado e branca do outro.
— Usa isto quando estiveres aqui — disse o sacerdote — mas fica sabendo que pouco precisarás dela por agora. Amanhã irás ter com Izembaro para dares início ao primeiro aprendizado. Leva a roupa que quiseres das caves, lá em baixo. A patrulha da cidade anda à procura de uma certa rapariga feia, conhecida por frequentar o Porto Púrpura, portanto é melhor teres também uma cara nova. — Pegou-lhe no queixo, virou-lhe a cabeça de um lado para o outro, fez um aceno. — Uma bonita desta vez, parece-me. Tão bonita como a tua. Quem és, pequena?
— Ninguém — respondeu ela.
CERSEI
Na última noite do seu aprisionamento, a rainha não conseguiu dormir. De todas as vezes que fechava os olhos, a cabeça enchia-se-lhe de presságios e fantasias sobre o dia seguinte. Terei guardas, disse a si própria. Eles manterão a multidão afastada. Ninguém será autorizado a tocar-me. O Alto Pardal prometera-lhe isso.
Mesmo assim, tinha medo. No dia em que Myrcella zarpara para Dorne, o dia dos motins do pão, mantos dourados tinham sido colocados ao longo do trajeto do cortejo, mas a turba rompera as linhas para fazer em pedaços o velho e gordo Alto Septão e violar Lollys Stokeworth meia centena de vezes. E se aquela criatura pálida, mole e estúpida fora capaz de incitar os animais completamente vestida, quão maior seria a luxúria que uma rainha inspiraria?
Cersei percorreu a cela, agitada como os leões enjaulados que viviam nas entranhas de Rochedo Casterly quando era rapariga, um legado dos tempos do avô. Ela e Jaime costumavam desafiar-se um ao outro a subir para a jaula, e uma vez ela arranjara coragem suficiente para enfiar a mão entre duas barras e tocar numa das grandes feras amareladas. Sempre fora mais ousada do que o irmão. O leão virara a cabeça para a fitar com enormes olhos dourados. Depois lambera-lhe os dedos. A sua língua era áspera como uma grosa, mas mesmo assim ela não quisera puxar a mão até que Jaime lhe pegara nos ombros e a afastara violentamente da jaula.
— É a tua vez — dissera-lhe depois. — Puxa-lhe pela juba, não te atreves. — Ele nunca o fez. Devia ter sido eu a receber a espada, não ele.
Andou de um lado para o outro descalça e a tremer, com uma manta fina enrolada em volta dos ombros. Estava ansiosa pelo dia que se aproximava. A noite tudo estaria terminado. Uma pequena caminhada e estarei em casa, estarei de novo com Tommen, nos meus próprios aposentos dentro da Fortaleza de Maegor. O tio dissera que era a única maneira de se salvar. Mas seria? Não podia confiar no tio, tal como não confiava naquele Alto Septão. Ainda podia recusar. Ainda podia insistir na minha inocência e arriscar tudo num julgamento.
Mas não se atrevia a deixar que a Fé a julgasse, como Margaery Tyrell pretendia fazer. Isso podia servir bastante bem à rosinha, mas Cersei tinha poucos amigos entre as septãs e pardais que rodeavam aquele novo Alto
Septão. A sua única esperança era julgamento pela batalha, e para isso precisava de ter um campeão.
Se Jaime não tivesse perdido a mão...
Mas essa estrada não levava a sítio nenhum. A mão da espada de Jaime fora-se, e ele também, desaparecido com a tal Brienne algures nas terras fluviais. A rainha tinha de encontrar outro defensor, caso contrário a provação do dia seguinte seria a menor das suas penas. Os seus inimigos acusavam-na de traição. Tinha de chegar a Tommen, qualquer que fosse o custo. Ele ama-me. Não dirá que não à sua própria mãe. O Joff era teimoso e imprevisível, mas Tommen é um bom rapazinho, um bom reizinho. Ele fará o que lhe disser. Se ficasse ali estava perdida, e só regressaria à Fortaleza Vermelha caminhando. O Alto Pardal fora inflexível, e Sor Kevan recusava-se a erguer um dedo contra ele.
— Nenhum mal me acontecerá hoje — disse Cersei quando a primeira luz do dia roçou na sua janela. — Só o meu orgulho sofrerá. — As palavras ressoaram a oco nos seus ouvidos. Jaime pode ainda vir. Imaginou-o a cavalgar através das brumas matinais, com a armadura dourada brilhante à luz do Sol nascente. Jaime, se alguma vez me amaste...
Quando as carcereiras vieram buscá-la, a Septã Unella, a Septã Moelle e a Septã Scolera lideravam a comitiva. Com elas estavam quatro noviças e duas das irmãs silenciosas. Ver as irmãs silenciosas com as suas vestes cinzentas encheu a rainha de súbitos terrores. Porque estão elas aqui? Vou morrer? As irmãs silenciosas cuidavam dos mortos.
— O Alto Septão prometeu que nenhum mal me aconteceria.
— E não acontecerá. — A Septã Unella chamou as noviças com um gesto. Trouxeram sabão de lixívia, uma bacia de água quente, uma tesoura e uma longa navalha direita. Um arrepio percorreu-a ao ver o aço. Elas querem rapar-me. Um pouco mais de humilhação, uma passa para as minhas papas. Não lhes daria o prazer de a ouvirem suplicar. Sou Cersei da Casa Lannister, uma leoa do Rochedo, a legítima rainha dos Sete Reinos, filha legítima de Tywin Lannister. E o cabelo volta a crescer.
— Tratai lá disso — disse.
A mais velha das duas irmãs silenciosas pegou na tesoura. Uma barbeira experiente, sem dúvida; era frequente a sua ordem limpar os cadáveres dos mortos nobres antes de os devolver à família, e fazer barbas e cortar cabelo fazia parte de tal tarefa. A mulher começou por descobrir a cabeça da rainha. Cersei permaneceu tão imóvel como uma estátua de pedra enquanto a tesoura soltava estalidos. Mancheias de cabelo dourado caíam ao chão. Não fora autorizada a cuidar dele como devia ser, ali fechada naquela cela, mas mesmo por lavar e emaranhado brilhava onde o sol o tocava. A minha coroa, pensou a rainha. Tiraram-me a outra coroa, e agora estão também a tirar esta. Quando as suas madeixas e caracóis ficaram empilhados em volta dos pés, uma das noviças ensaboou-lhe a cabeça e a irmã silenciosa rapou o resto do cabelo com uma navalha.
Cersei esperara que aquilo fosse o fim, mas não.
— Tirai a combinação, Vossa Graça — ordenou a Septã Unella.