O amor dela por Daario é veneno. Um veneno mais lento do que o dos gafanhotos, mas igualmente mortífero no fim.
— Ainda há Jhogo — disse Sor Barristan. — Ele e o Herói. Ambos
preciosos para Sua Graça.
— Nós também temos reféns — fez-lhe lembrar Skahaz Tolarrapada. — Se os esclavagistas matarem um dos nossos, nós matamos um dos deles.
Por um momento, Sor Barristan não soube a quem se estava o outro a referir. Depois ocorreu-lhe.
— Os copeiros da rainha?
— Reféns — insistiu Skahaz mo Kandaq. — Grazdar e Qezza são do sangue da Graça Verde. Mezzara é dos Merreq, Kezmya é Pahl, Azzak é Ghazeen. Bhakaz é Loraq, da família do próprio Hizdahr. Todos são filhos e filhas das pirâmides. Zhak, Quazzar, Uhlez, Hazkar, Dhazak, Yherizan, todos filhos de Grandes Mestres.
— Raparigas inocentes e rapazes de rostos doces. — Sor Barristan acabara por conhecê-los a todos durante o período em que serviram a rainha; Grazhar com os seus sonhos de glória, a tímida Mezzara, o preguiçoso Miklaz, a vaidosa e bonita Kezmya, Qezza com os seus grandes olhos suaves e voz de anjo, Dhazzar, o dançarino, e os outros. — Crianças.
— Crianças da Harpia. Só sangue pode pagar por sangue.
— Foi isso que disse o yunkaita que nos trouxe a cabeça de Groleo.
— Não se enganava.
— Não o permitirei.
— De que servem reféns se não se lhes pode tocar?
— Talvez devêssemos oferecer três das crianças por Daario, Herói e Jhogo — cedeu Sor Barristan. — Sua Graça...
— ... não está aqui. Cabe a vós e a mim fazer o que tem de ser feito. Sabeis que tenho razão.
— O Príncipe Rhaegar tinha dois filhos — disse-lhe Sor Barristan. — Rhaenys era uma rapariguinha, Aegon um bebê de peito. Quando Tywin Lannister tomou Porto Real, os seus homens mataram-nos a ambos. Ele apresentou os corpos ensanguentados envoltos em mantos carmesins, como presente para o novo rei. — E que disse Robert quando os viu? Sorriu? Barristan Selmy fora gravemente ferido no Tridente, portanto fora poupado à visão do presente do Lorde Tywin, mas era frequente sentir curiosidade. Se eu o tivesse visto sorrir sobre as ruínas dos filhos de Rhaegar, nenhum exército neste mundo podia ter-me impedido de o matar. — Não tolerarei o assassínio de crianças. Aceitai, caso contrário não desempenharei nenhum papel nisto.
Skahaz soltou um risinho.
— Sois um velho teimoso. Os vossos rapazes de rostos doces só irão crescer para se transformarem em Filhos da Harpia. Ou os matais agora ou os matareis nessa altura.
— Matam-se homens por aquilo que fazem de errado, não por aquilo que poderão fazer um dia.
O Tolarrapada tirou um machado da parede, inspecionou-o e soltou um grunhido.
— Seja. Nenhum mal será feito a Hizdahr ou aos reféns. Isso contentar-vos-á, Sor Avô?
Nada nisto me contentará.
— Servirá. A hora do lobo. Lembrai-vos.
— Não é provável que me esqueça, sor. — Embora a boca de bronze do morcego não se mexesse, Sor Barristan apercebeu-se do sorriso sob a máscara. — Há muito que Kandaq espera por esta noite.
É isso que eu temo. Se o Rei Hizdahr estivesse inocente, o que fariam naquele dia seria traição. Mas como podia ele estar inocente? Selmy ouvira-o a insistir com Daenerys para provar os gafanhotos envenenados, a gritar com os seus homens para matarem o dragão. Se não agirmos, Hizdahr matará os dragões e abrirá os portões aos inimigos da rainha. Não temos alternativa. Mas por mais que virasse e revisasse o problema, o velho cavaleiro não conseguia encontrar honra no que se preparava para fazer.
O resto desse longo dia passou por ele a correr com a velocidade de um caracol. Noutro local, bem o sabia, o Rei Hizdahr consultava Reznak mo Reznak, Marghaz zo Loraq, Galazza Galare e os outros conselheiros meereeneses, decidindo a melhor maneira de responder às exigências de Yunkai... mas Barristan Selmy já não participava nesses conselhos. E também não tinha um rei para guardar. Em vez disso, fez uma ronda à pirâmide, de cima a baixo, para se certificar de que todas as sentinelas estavam nos seus postos. Isso levou a maior parte da manhã. Passou essa tarde com os seus órfãos, até pegou pessoalmente em espada e escudo para fornecer um teste mais severo a alguns dos rapazes mais velhos.
Alguns deles estavam a treinar-se para as arenas de combate quando Daenerys Targaryen tomara Meereen e os libertara das grilhetas. Esses já tinham uma boa familiaridade com a espada, a lança e o machado de guerra mesmo antes de Sor Barristan se encarregar deles. Alguns podiam perfeitamente estar prontos. O rapaz das Ilhas Basilisco, para começar. Tumco Lho. Era preto como tinta de meistre, mas era rápido e forte, o melhor espadachim natural que Selmy vira desde Jaime Lannister. Larraq também. O Chicote. Sor Barristan não aprovava o seu estilo de combate, mas não era possível duvidar da sua perícia. Larraq tinha anos de trabalho à sua frente antes de dominar as armas próprias de um cavaleiro, a espada, a lança e a maça de armas, mas era mortífero com o chicote e o tridente. O velho cavaleiro avisara-o de que o chicote seria inútil contra um inimigo couraçado... até ver como Larraq o usava, enrolando-o em volta das pernas dos seus oponentes para os derrubar. Não é um cavaleiro, por enquanto, mas é um feroz guerreiro.
Larraq e Tumco eram os melhores. Depois deles, o lhazareno, aquele a quem os outros rapazes chamavam Ovelha Vermelha, se bem que por enquanto fosse todo ferocidade e nenhuma técnica. Os irmãos também, talvez, três ghiscariotas de baixo nascimento, escravizados para pagar as dívidas do pai.
Isso fazia seis. Seis de vinte e sete. Selmy podia ter esperado mais, mas seis eram um bom começo. Os outros rapazes eram mais novos, na sua maioria, e estavam mais familiarizados com teares, charruas e penicos do que com espadas e escudos, mas trabalhavam duramente e aprendiam depressa. Alguns anos como escudeiros, e podia ter mais seis cavaleiros para dar à rainha. Quanto àqueles que nunca estariam prontos, bem, nem todos os rapazes estavam destinados a ser cavaleiros. O reino também precisa de veleiros, estalajadeiros e amieiros. Isso era tão verdadeiro em Meereen como em Westeros.
Enquanto os observava a treinar, Sor Barristan ponderou armar Tumco e Larraq cavaleiros naquele lugar e momento, e talvez a Ovelha Vermelha também. Era necessário um cavaleiro para armar um cavaleiro e, se alguma coisa corresse mal naquela noite, a alvorada podia encontrá-lo morto ou numa masmorra. Nesse caso, quem armaria os seus escudeiros? Por outro lado, a reputação de um jovem cavaleiro derivava pelo menos em parte da honra do homem que lhe tinha conferido o grau. Não fazia bem algum aos seus rapazes que se soubesse que as esporas lhes tinham sido dadas por um traidor, e isso podia perfeitamente levá-los a uma masmorra ao lado da sua. Eles merecem melhor, decidiu Sor Barristan. Antes uma vida longa como escudeiro do que uma curta como cavaleiro manchado.
Quando a tarde se fundiu na noite, pediu aos seus instruendos para pousarem as espadas e os escudos e se reunirem à sua volta. Falou-lhes do que significava ser um cavaleiro.