— São as regras da cavalaria que fazem um verdadeiro cavaleiro, não uma espada — disse. — Sem honra, um cavaleiro não passa de um assassino comum. É melhor morrer com honra do que viver sem ela. — Pareceu-lhe que os rapazes o olhavam estranhamente, mas um dia compreenderiam.
Mais tarde, de volta ao ápice da pirâmide, Sor Barristan foi encontrar Missandei no meio de pilhas de pergaminhos e de livros, a ler.
— Fica aqui esta noite, pequena — disse-lhe. — Aconteça o que acontecer, seja o que for que vejas ou ouças, não saias dos aposentos da rainha.
— Esta ouve — disse a rapariga. — Se puder perguntar...
— E melhor não. — Sor Barristan saiu sozinho para os jardins do terraço. Não fui feito para isto, refletiu, enquanto olhava a extensa cidade. As pirâmides estavam a despertar, uma por uma, com lanternas e archotes a ganharem uma vida tremeluzente enquanto as sombras se reuniam nas ruas, lá em baixo. Conspirações, estratagemas, sussurros, mentiras, segredos dentro de segredos, e sem que saiba como tornei-me parte deles.
Por aquela altura talvez já se devesse ter habituado a tais coisas. A Fortaleza Vermelha também tinha os seus segredos. Mesmo Rlmegar. O príncipe de Pedra do Dragão nunca confiara nele como confiara em Arthur Dayne. Harrenhal era prova disso mesmo. O ano da falsa primavera.
A recordação ainda lhe era amarga. O velho Lorde Whent anunciara o torneio pouco depois de uma visita do irmão, Sor Oswell Whent, da Guarda Real. Com Varys a murmurar-lhe ao ouvido, o Rei Aerys convencera-se de que o filho estava a conspirar para o depor, de que o torneio do Whent não passava de um estratagema para dar a Rhaegar um pretexto para se encontrar com tantos grandes senhores quantos pudessem ser reunidos. Aerys não punha os pés fora da Fortaleza Vermelha desde Valdocaso, mas de súbito anunciara que acompanharia o Príncipe Rhaegar a Harrenhal, e a partir desse momento tudo correra mal.
Se eu tivesse sido um cavaleiro melhor... se eu tivesse derrubado o príncipe naquela última arremetida, como derrubei tantos outros, ter-me-ia cabido a mim escolher a rainha do amor e da beleza...
Rhaegar escolhera Lyanna Stark de Winterfell. Barristan Selmy teria feito uma escolha diferente. Não a rainha, que não estava presente. Nem Elia de Dorne, embora ela fosse boa e elegante; se tivesse sido ela a escolhida muitas guerras e mágoas podiam ter sido evitadas. A sua escolha teria sido uma jovem donzela há pouco tempo na corte, uma das companheiras de Elia... se bem que, quando comparada com Ashara Dayne, a princesa dornesa não passasse de uma criada de cozinha.
Mesmo após todos aqueles anos, Sor Barristan ainda se recordava do sorriso de Ashara, do som do seu riso. Bastava-lhe fechar os olhos para a ver, com o seu longo cabelo escuro a cair-lhe em volta dos ombros e aqueles perturbadores olhos purpúreos. Daenerys tem os mesmos olhos. Por vezes, quando a rainha o olhava, sentia-se como se estivesse a olhar para a filha de Ashara...
Mas a filha de Ashara nascera morta, e a sua bela senhora atirara-se de uma torre pouco depois, louca de desgosto pela filha que perdera, e talvez também pelo homem que a desonrara em Harrenhal. Morrera sem nunca saber que Sor Barristan a amara. Como podia sabê-lo? Ele era um cavaleiro da Guarda Real, prestara um juramento de celibato. Nenhum bem podia vir de lhe revelar os seus sentimentos. Também nenhum bem veio do silêncio. Se eu tivesse derrubado Rhaegar e coroado Ashara como rainha do amor e da beleza, poderia ela ter olhado para mim e não para o Stark?
Nunca saberia. Mas, de todos os seus falhanços, nenhum atormentava tanto Barristan Selmy como esse.
O céu estava encoberto, o ar quente, sufocante, opressivo, mas havia algo nele que lhe fazia formigar a espinha. Chuva, pensou. Vem aí uma tempestade. Se não chegar hoje, chega amanhã. Sor Barristan perguntou a si próprio se sobreviveria para a ver. Se Hizdahr tiver a sua Aranha, sou um homem morto. Se as coisas chegassem a esse ponto, pretendia morrer como vivera, com a espada na mão.
Quando a última luz se desvaneceu a oeste, por trás das velas dos navios que patrulhavam a Baía dos Escravos, Sor Barristan voltou para dentro, chamou um par de criados e disse-lhes para aquecerem água para um banho. A esgrima com os escudeiros ao calor da tarde deixara-o a sentir-se sujo e suado.
A água, quando chegou, estava apenas tépida, mas Selmy deixou-se ficar no banho até arrefecer, e esfregou a pele até a deixar vermelha. Tão limpo como alguma vez estivera, levantou-se, secou-se e vestiu-se de branco. Meias, roupa interior, túnica de seda, justilho acolchoado, tudo lavado cie fresco e embranquecido. Por cima disso, envergou a armadura que a rainha lhe dera como sinal da sua estima. A cota de malha era dourada, finamente trabalhada, com os elos tão flexíveis como bom couro; a placa de aço era esmaltada, dura como gelo e brilhante como neve acabada de cair. O punhal foi para uma anca, a espada longa para a outra, pendurados de um cinto de couro branco com fivelas douradas. Por fim, despendurou o longo manto branco e prendeu-o em volta dos ombros.
Quanto ao elmo, deixou-o no seu gancho. A estreita fenda para os olhos limitava-lhe a visão, e precisava de ser capaz de ver para aquilo que se aproximava. Os corredores da pirâmide eram escuros de noite, e era possível ser-se atacado por inimigos vindos de qualquer lado. Além disso, embora as ornamentadas asas de dragão que adornavam o elmo fossem magníficas de contemplar, era demasiado fácil prenderem-se numa espada ou num machado. Deixá-lo-ia para o seu próximo torneio, se os Sete lho concedessem.
Armado e couraçado, o velho cavaleiro esperou, sentado nas sombras do seu pequeno quarto contíguo aos aposentos da rainha. As caras de todos os reis que servira e a que falhara flutuaram na sua frente, no escuro, e as caras dos irmãos que tinham servido a seu lado na Guarda Real também. Perguntou a si próprio quantos deles teriam feito o que se preparava para fazer. Alguns, certamente. Mas nem todos. Alguns não teriam hesitado em abater o Tolarrapada por traição. Fora da pirâmide começou a chover. Sor Barristan manteve-se sentado sozinho nas trevas, à escuta. Soa a lágrimas, pensou. Soa a reis mortos a chorar.
Então chegou a hora de ir.
A Grande Pirâmide de Meereen fora construída como eco da Grande Pirâmide de Ghis, cujas colossais ruínas Lomas Longstrider visitara em tempos. Tal como a sua antiga predecessora, cujos corredores de mármore vermelho eram agora o antro de morcegos e aranhas, a pirâmide meereenesa possuía trinta e três pisos, visto que esse número era de alguma forma sagrado para os deuses de Ghis. Sor Barristan iniciou a longa descida sozinho, com o manto branco a ondular atrás de si ao descer. Seguiu pelas escadas dos criados, não as grandes escadarias de mármore repleto de veios, mas as escadas mais estreitas, mais íngremes e mais diretas, ocultas no interior das paredes de tijolo grossas.
Doze pisos mais abaixo encontrou o Tolarrapada à espera, ainda com as feições vulgares escondidas pela máscara que usara nessa manhã, o morcego vampiro. Seis Feras de Bronze estavam com ele. Todos estavam mascarados de insetos, idênticos uns aos outros.
Gafanhotos, compreendeu Selmy.
— Groleo — disse.
— Groleo — respondeu um dos gafanhotos.
— Tenho mais gafanhotos, se precisardes deles — disse Skahaz.
— Seis devem servir. E os homens colocados nas portas?
— Meus. Não tereis problemas.
Sor Barristan apertou o braço do Tolarrapada.
— Não derrameis sangue, a menos que tenhais de o fazer. Ao chegar a manhã reuniremos um conselho, e diremos à cidade o que fizemos e porquê.