— Está na altura.
Os amigos puseram-se de pé. Sor Archibald emborcou o resto do seu leite de cabra e limpou o bigode de leite do lábio superior com as costas de uma grande mão.
— Vou buscar o nosso vestuário de saltimbancos.
Regressou com a trouxa que tinham recebido do Príncipe Esfarrapado na segunda reunião. Lá dentro estavam três longos mantos com capuz feitos com uma miríade de pequenos quadrados de pano cosidos uns aos outros, três mocas, três espadas curtas, três máscaras de bronze polido. Um touro, uni leão e um macaco.
Tudo o que era necessário para se ser um Fera de Bronze.
— Eles talvez peçam uma senha — avisara-os o Príncipe Esfarrapado, quando lhes entregara a trouxa. — E cão.
— Tendes a certeza? — perguntara-lhe Gerris.
— A suficiente para apostar nisso uma vida.
O príncipe não se iludira quanto ao que ele queria dizer.
— A minha vida.
— E essa, sim.
— Como soubestes a senha?
— Calhou encontrarmos uns Feras de Bronze e Meris perguntou-lhes com lindeza. Mas um príncipe devia saber que não é boa ideia fazer perguntas destas, dornês. Em Pentos temos um ditado. Nunca perguntes a um padeiro com que é feita a tarte. Limita-te a comer.
Limita-te a comer. Quentyn supunha que havia sabedoria naquilo.
— Eu serei o touro — anunciou Arch.
Quentyn entregou-lhe a máscara de touro.
— Para mim é o leão.
— O que faz de mim macaco. — Gerris encostou a máscara de macaco à cara. — Como é que eles respiram com estas coisas?
— Limita-te a pô-la. — O príncipe não estava com disposição para brincadeiras.
A trouxa continha também um chicote; um perigoso bocado de couro velho com cabo de latão e osso, suficientemente robusto para arrancar a pele a um boi.
— Para que serve isso? — perguntou Arch.
— Daenerys usou um chicote para intimidar a fera preta. — Quentyn enrolou o chicote e pendurou-o do cinto. — Arch, traz também o teu martelo. Podemos precisar dele.
Não era fácil entrar de noite na Grande Pirâmide de Meereen. As portas eram fechadas e trancadas todos os dias ao pôr-do-sol, e permaneciam fechadas até à primeira luz da aurora. Estavam colocados guardas a todas as entradas, e mais guardas patrulhavam o terraço inferior, de onde podiam observar a rua. Anteriormente, esses guardas tinham sido Imaculados. Agora eram Feras de Bronze. E isso faria toda a diferença, esperava Quentyn.
O turno mudava quando o Sol nascia, mas a aurora ainda distava meia hora quando os três dorneses desceram pela escada dos criados. As paredes que os rodeavam eram feitas de tijolos de meia centena de cores, mas as sombras transformavam-nos a todos em cinzento até serem tocados pela luz do archote que Gerris transportava. Não encontraram ninguém na longa descida. O único som era o raspar das botas nos gastos tijolos sob os seus pés.
Os portões principais da pirâmide davam para a praça central de Meereen, mas os dorneses dirigiram-se a uma entrada lateral que abria para uma viela. Aquelas eram as portas que os escravos tinham usado em dias idos quando tratavam dos assuntos dos seus amos, as portas por onde o povo e os mercadores entravam e saíam e faziam as suas entregas.
As portas eram de bronze sólido, trancadas com uma pesada barra de ferro. À frente delas estavam dois Feras de Bronze, armados com mocas, lanças e espadas curtas. A luz do archote reluzia no bronze polido das suas máscaras; uma ratazana e uma raposa. Quentyn indicou com um gesto ao grandalhão para ficar para trás nas sombras. Ele e Gerris avançaram juntos.
— Chegastes cedo — disse a raposa.
Quentyn encolheu os ombros.
— Podemos ir-nos outra vez embora, se quiseres. Por mim, podes cumprir o meu turno. — Bem sabia que não soava nada como um ghiscariota; mas metade dos Feras de Bronze eram escravos libertados, com todos os tipos de línguas nativas, portanto o seu sotaque passava despercebido.
— Cumpro, o caralho — disse a ratazana.
— Dá-nos a senha de hoje — disse a raposa.
— Cão — disse o dornês.
Os dois Feras de Bronze trocaram um olhar. Durante três longos segundos, Quentyn teve receio de que algo tivesse corrido mal, de que de alguma forma a Linda Meris e o Príncipe Esfarrapado tivessem arranjado a senha errada. Depois a raposa grunhiu.
— Então é cão — disse. — A porta é vossa. — Quando se afastaram, o príncipe recomeçou a respirar.
Não tinham muito tempo. A verdadeira rendição apareceria em breve, sem dúvida.
— Arch — chamou, e o grandalhão surgiu, com a luz dos archotes a brilhar na máscara de touro. — A barra. Depressa.
A barra de ferro era grossa e pesada, mas estava bem oleada. Sor Archibald não teve dificuldade em erguê-la. Enquanto a pousava apoiada numa das extremidades, Quentyn abriu as portas e Gerris atravessou-as, brandindo o archote.
— Trá-la já para dentro. Despacha-te.
A carroça do carniceiro estava lá fora, à espera na viela. O condutor deu com o chicote na mula e entrou com estrondo, fazendo as rodas reforçadas a ferro ressoar ruidosamente nos tijolos. A carcaça esquartejada de um boi enchia a caixa da carroça, auxiliada por duas ovelhas mortas. Meia dúzia de homens entraram a pé. Cinco usavam os mantos e máscaras de Feras de Bronze, mas a Linda Meris não se incomodara com disfarces.
— Onde está o teu senhor? — perguntou a Meris.
— Não tenho senhor nenhum — respondeu ela. — Se vos referis ao vosso colega príncipe, está por perto, com cinquenta homens. Trazei o vosso dragão cá para fora, e ele faz-vos sair em segurança, conforme prometido. Quem comanda aqui é o Caggo.
Sor Archibald estava a examinar a carroça do carniceiro com um olho amargo.
— Aquela carroça vai ser suficientemente grande para conter um dragão? — perguntou.
— Deve ser. Conteve dois bois. — O Mata-Cadáveres estava vestido de Fera de Bronze, com a cara marcada e cheia de cicatrizes escondida por trás de uma máscara em forma de cobra, mas o familiar arakh negro que trazia à anca denunciava-o. — Fomos informados de que estas feras são mais pequenas do que o monstro da rainha.
— O fosso abrandou-lhes o crescimento. — As leituras de Quentyn sugeriam que a mesma coisa ocorrera nos Sete Reinos. Nenhum dos dragões nascido e criado no Fosso dos Dragões de Porto Real se aproximara do tamanho de Vhagar ou de Meraxes, muito menos do Terror Negro, o monstro do Rei Aegon. — Trouxestes correntes suficientes?
— Quantos dragões tendes? — disse a Linda Meris. — Temos correntes suficientes para dez, escondidas por baixo da carne.
— Muito bem. — Quentyn sentia a cabeça leve. Nada daquilo parecia bem real. Num momento parecia um jogo, no seguinte um pesadelo qualquer, como um sonho em que desse por si a abrir uma porta escura, sabendo que o horror e a morte esperavam do outro lado, mas mesmo assim impotente para se pôr travão. Tinha as palmas das mãos escorregadias de suor. Limpou-as nas pernas e disse: — Haverá mais guardas à porta do fosso.
— Nós sabemos — disse Gerris.
— Temos de estar prontos para eles.
— Estamos — disse Arch.
Apareceu uma dor na barriga de Quentyn. Sentiu uma súbita necessidade de mover as tripas, mas sabia que não se atreveria a afastar-se agora.
— Então por aqui. — Raramente se sentira mais rapaz. No entanto eles seguiram-no; Gerris e o grandalhão, Meris e Caggo e os outros Aventados. Dois dos mercenários tinham tirado bestas de algum esconderijo na carroça.