— Porquê?
— Pela Patrulha. — Wick voltou a tentar apunhalá-lo. Desta vez Jon agarrou-lhe no pulso e dobrou-lhe o braço para trás até que ele deixou cair o punhal. O desengonçado intendente recuou, de mãos erguidas como quem diz "eu não, não fui eu." Havia homens a gritar. Jon levou as mãos a Garralonga, mas os dedos tinham-se-lhe tornado hirtos e desajeitados. Sem que soubesse porquê, não parecia conseguia libertar a espada da bainha.
Então Bowen Marsh apareceu ali na sua frente, com lágrimas a escorrer-lhe pela cara.
— Pela Patrulha. — Socou Jon na barriga. Quando afastou a mão, o punhal ficou onde o enterrara.
Jon caiu de joelhos. Encontrou o cabo do punhal e libertou-o. No frio ar noturno, o ferimento fumegava
— Fantasma — sussurrou. A dor submergiu-o. Espeta-lhes a ponta afiada. Quando o terceiro punhal o atingiu entre as omoplatas, soltou um grunhido e caiu de cara na neve. Não chegou a sentir a quarta faca. Só o frio...
O MÃO DA RAINHA
O príncipe dornês levou três dias a morrer.
Deu o seu último suspiro trémulo na desolada madrugada negra, enquanto a chuva caía a silvar de um céu escuro para transformar as ruas de tijolo da cidade antiga em rios. A chuva afogara o pior dos incêndios, mas farrapos de fumo ainda se erguiam da ruína que fora a pirâmide de Hazkar, e a grande pirâmide negra de Yherizan, onde Rhaegal fizera o seu covil, erguia-se nas sombras como uma mulher gorda adornada com brilhantes jóias cor de laranja.
Os deuses talvez não estejam surdos, afinal, refletiu Sor Barristan Selmy enquanto observava essas brasas distantes. Se não fosse a chuva, os incêndios podiam já ter consumido Meereen inteira por esta altura.
Não viu sinal de dragões, mas não esperava vê-lo. Os dragões não gostavam da chuva. Um fino corte vermelho marcava o horizonte oriental onde o Sol talvez aparecesse em breve. Fazia lembrar a Selmy o primeiro sangue a escorrer de um ferimento. Era frequente que, mesmo num golpe profundo, o sangue chegasse antes da dor.
Estava junto do parapeito do mais alto degrau da Grande Pirâmide, a perscrutar o céu como fazia todas as manhãs, sabendo que a aurora tinha de chegar e esperando que a sua rainha chegasse com ela. Ela não nos abandonou, ela nunca abandonaria o seu povo, estava a dizer a si próprio quando ouviu o estertor final do príncipe a vir dos aposentos da rainha.
Sor Barristan foi para dentro. A água da chuva escorreu pelas costas do seu manto branco, e as botas deixaram marcas húmidas nos soalhos e tapetes. Por ordens suas, Quentyn Martell fora deitado na cama da própria rainha. Parecia não ser mais que uma bondade deixá-lo morrer na cama que atravessara metade do mundo para alcançar. A cama estava arruinada — lençóis, colchas, almofadas, colchão, tudo fedia a sangue e a fumo, mas Sor Barristan achava que Daenerys o perdoaria.
Missandei estava sentada ao lado da cama. Passara noite e dia com o príncipe, satisfazendo as necessidades que ele era capaz de exprimir, dando-lhe água e leite da papoila quando ele tinha força suficiente para beber, escutando as poucas palavras torturadas que ele arquejava de vez em quando, lendo em voz alta quando ele se silenciava, dormindo na cadeira a seu lado. Sor Barristan pedira a alguns dos copeiros da rainha para ajudar, mas a visão do homem queimado era demasiado mesmo para o mais valente entre eles. E as Graças Azuis nunca tinham vindo, embora as tivesse mandado buscar por quatro vezes. Talvez a última tivesse sido já levada pela égua branca.
A minúscula escriba naatina ergueu o olhar quando se aproximou.
— Honrado sor. O príncipe já está para lá da dor. Os seus deuses dorneses levaram-no para casa. Vedes? Sorri.
Como sabes? Ele não tem lábios. Teria sido maior bondade se os dragões o tivessem devorado. Isso teria pelo menos sido rápido. Aquilo... O fogo é uma forma hedionda de morrer. Pouco admira que os infernos sejam feitos de chamas.
— Tapa-o.
Missandei puxou a colcha para cima da cara do príncipe.
— Que se fará dele, sor? Está muito longe de casa.
— Eu tratarei de que seja devolvido a Dome. — Mas como? Como cinzas? Isso exigiria mais fogo, e Sor Barristan não conseguia ter estômago para tal. Teremos de lhe limpar a carne dos ossos. Escaravelhos em vez de cozedura. Na pátria, as irmãs silenciosas teriam tratado disso, mas aquilo era a Baía dos Escravos. A irmã silenciosa mais próxima estava a dez mil léguas de distância. — Devias ir agora dormir, pequena. Na tua cama.
— Se esta pode ter a ousadia, sor, vós devíeis fazer o mesmo. Não andais a dormir a noite inteira.
Há muitos anos que não durmo, pequena. Não durmo desde o Tridente. O Grande Meistre Pycelle dissera-lhe um dia que os velhos não precisavam de tanto sono como os jovens, mas era mais do que isso. Chegara àquela idade em que detestava fechar os olhos, por temer nunca voltar a abri-los. Outros homens podiam desejar morrer na cama, a dormir, mas isso não era morte para um cavaleiro da Guarda Real.
— As noites são longas demais — disse a Missandei — e há mais que muito a fazer, sempre. Aqui, bem como nos Sete Reinos. Mas tu, por agora, fizeste o suficiente, pequena. Vai descansar. — Ese os deuses forem bons, não sonharás com dragões.
Depois de a rapariga se ir embora, o velho cavaleiro afastou a colcha para olhar uma última vez o rosto de Quentyn Martell, ou o que dele restava. Tanta da carne do príncipe caíra que se conseguia ver o crânio. Os seus olhos eram lagoas de pus. Ele devia ter ficado em Dome. Devia ter permanecido como sapo. Nem todos os homens estão destinados a dançar com dragões. Quando voltou a tapar o rapaz, deu por si a interrogar-se sobre se haveria alguém para tapar a sua rainha, ou se o cadáver dela jazeria sem ser chorado entre as altas ervas do mar dothraki, fitando cegamente o céu até a carne cair de cima dos seus ossos.
— Não — disse em voz alta. — Daenerys não está morta. Ela ia montada no dragão. Eu vi-o com os meus próprios olhos. — Já dissera o mesmo cem vezes... mas cada dia que passava tornava mais difícil acreditar. Ela tinha o cabelo em fogo. Também vi isso. Estava a arder... e, se não a vi cair, há centenas que juram ter visto.
O dia aproximara-se da cidade. Embora ainda chovesse, uma vaga luz derramava-se pelo céu oriental. E com o sol chegou o Tolarrapada. Skahaz estava vestido com o seu trajo familiar de camisa plissada negra, grevas e placa de peito musculosa. A máscara de bronze que trazia debaixo do braço era nova; uma cabeça de lobo com a língua pendente.
— Então — disse, em jeito de saudação. — O palerma está morto, é?
— O Príncipe Quentyn morreu logo antes da primeira luz da aurora. — Selmy não estava surpreendido por Skahaz saber. As notícias viajavam rapidamente dentro da pirâmide. — O conselho está reunido?
— Aguardam a presença do Mão lá em baixo.
Uma parte de si desejou gritar: eu não sou Mão nenhuma. Sou só um simples cavaleiro, o protetor da rainha. Nunca desejei isto. Mas com a rainha desaparecida e o rei a ferros, alguém tinha de governar, e Sor Barristan não confiava no Tolarrapada.
— Houve alguma notícia da Graça Verde?
— Ainda não regressou à cidade. — Skahaz opusera-se ao envio da sacerdotisa. Nem a própria Galazza Galare acolhera a tarefa com entusiasmo. Iria, concedera, a bem da paz, mas Hizdahr zo Loraq era mais adequado para negociar com os Sábios Mestres. Porém, Sor Barristan não cedia facilmente, e por fim a Graça Verde inclinara a cabeça e jurara fazer o melhor que pudesse.