— Recusaram?
— Recusaram. Foi-me dito que nenhuma quantidade de ouro pagará a devolução da vossa gente. Só o sangue de dragões pode voltar a libertá-los.
Era a resposta que Sor Barristan esperara, ainda que não fosse aquela que tivera a esperança de ouvir. A boca apertou-se-lhe.
— Sei que não são estas as palavras que desejáveis ouvir — disse Galazza Galare. — Mas, pessoalmente, eu compreendo. Aqueles dragões são feras cruéis. Yunkai teme-os... e com bons motivos, não podeis negá-lo. As nossas histórias falam dos senhores dos dragões da temida Valíria, e da devastação que levaram aos povos da Velha Ghis. Mesmo a vossa jovem rainha, a bela Daenerys que chamava a si própria Mãe de Dragões... vimo-la a arder, naquele dia na arena... nem mesmo ela estava a salvo da ira do dragão.
— Sua graça não está... ela...
— ... está morta. Que os deuses lhe concedam um sono calmo. — Lágrimas brilharam por trás dos véus da mulher. — Que os seus dragões morram também.
Selmy estava à procura de uma resposta quando ouviu o som de passos pesados. A porta saltou para dentro, e Skahaz mo Kandaq irrompeu através dela, com quatro Feras de Bronze atrás de si. Quando Grazhar tentou bloquear-lhe o caminho, afastou o rapaz com violência.
Sor Barristan pôs-se em pé de imediato.
— Que se passa?
— Os trabucos — rosnou o Tolarrapada. — Todos os seis.
Galazza Galare ergueu-se.
— É assim que Yunkai responde à vossa oferta, sor. Avisei-vos de que não gostaríeis da resposta deles.
Então escolheram a guerra. Assim seja. Sor Barristan sentiu-se estranhamente aliviado. A guerra era algo que compreendia.
— Se julgam que quebrarão Meereen arremessando pedras...
— Não são pedras. — A voz da velha estava cheia de desgosto, de medo. — São cadáveres.
DAENERYS
A colina era uma ilha pedregosa num mar de verdura.
Dany precisou de metade da manhã para descer. Quando chegou ao sopé estava sem fôlego. Doíam-lhe os músculos e sentia-se como se tivesse o início de uma febre. As rochas tinham-lhe esfolado as mãos, deixando-as em carne viva. Mas estão em melhor estado do que estavam, decidiu enquanto arrancava uma bolha rebentada. Tinha a pele rosada e dorida e um fluido pálido e leitoso escorria-lhe das palmas estaladas das mãos, mas as queimaduras estavam a sarar.
A colina parecia mais alta ali em baixo. Dany começara a chamar-lhe Pedra do Dragão, o nome da antiga cidadela onde nascera. Não tinha recordações dessa Pedra do Dragão, mas não iria esquecer esta tão cedo. Ervas raquíticas e arbustos espinhosos cobriam-lhe as encostas inferiores; mais acima um emaranhado irregular de rocha nua projetava-se, íngreme e súbito, para o céu. Fora aí que, entre pedregulhos quebrados, arestas afiadas como navalhas e pináculos em forma de agulha, Drogon fizera o seu covil dentro de uma gruta pouco profunda. Quando vira pela primeira vez a colina, Dany apercebera-se de que o dragão já ali vivia há algum tempo. O ar cheirava lá a cinza, todas as rochas e árvores ao alcance da vista estavam chamuscadas e enegrecidas, o chão estava repleto de ossos queimados e quebrados, mas aquilo fora para ele um lar.
Dany conhecia a sedução do lar.
Dois dias antes, após trepar uma agulha de rocha, vira água para sul, um fio esguio que reluzira brevemente enquanto o Sol descia para o horizonte. Um curso de água, decidira. Pequeno, mas levá-la-ia a um ribeiro maior, e esse ribeiro desaguaria num riozinho qualquer, e todos os rios daquela parte do mundo eram vassalos do Skahazadhan. Depois de descobrir o Skahazadhan bastar-lhe-ia segui-lo para jusante até à Baía dos Escravos.
Preferiria regressar a Meereen sobre asas de dragão, com certeza. Mas esse era um desejo que Drogon não parecia partilhar.
Os senhores dos dragões da antiga Valíria controlavam as suas montadas através de feitiços vinculadores e cornos encantados. Daenerys arranjava-se com uma palavra e um chicote. Montada no dorso do dragão, era frequente sentir-se como se estivesse outra vez a aprender a cavalgar. Quando chicoteava a sua égua prateada no flanco direito, a égua ia para a esquerda, pois o primeiro instinto de um cavalo é fugir do perigo.
Quando dera com o chicote no lado direito de Drogon, ele virara para a direita, pois o primeiro instinto de um dragão é sempre atacar. Mas por vezes não parecia importar onde lhe batia; por vezes, ele ia para onde queria e levava-a consigo. Nem chicote nem palavras conseguiam desviar Drogon se ele não desejasse ser desviado. Acabara por ver que o chicote o aborrecia mais do que lhe doía; as suas escamas tinham-se tornado mais duras do que chifre.
E, por mais que o dragão voasse todos os dias, ao chegar a noite um instinto qualquer levava-o para o lar, para Pedra do Dragão. O lar dele, não o meu. O lar dela era em Meereen, com o marido e o amante. Era esse o seu lugar, certamente.
Continuara caminhar. Se olhar para trás estou perdida.
Memórias caminhavam com ela. Nuvens vistas de cima. Cavalos pequenos como formigas a trovejar pela erva fora. Uma lua prateada, quase suficientemente próxima para tocar. Rios a correr brilhantes e azuis lá em baixo, reluzindo ao sol. Voltarei eu a ver tais coisas? Sobre o dorso de Drogon sentia-se inteira. No céu, as aflições daquele mundo não podiam tocar-lhe. Como podia abandonar isso?
Mas já era tempo. Uma rapariga podia passar a vida a brincar, mas ela era uma mulher feita, uma rainha, uma esposa, uma mãe para milhares de pessoas. Os filhos precisavam dela. Drogon vergara perante o chicote, e ela tinha de fazer o mesmo. Tinha de voltar a pôr a coroa, e de regressar ao seu banco de ébano e aos braços do nobre esposo.
Hizdahr, o dos beijos tépidos.
O sol estava quente naquela manhã, o céu azul e sem nuvens. Isso era bom. A roupa de Dany pouco passava de trapos, e pouco calor lhe fornecia. Uma das sandálias tinha-lhe escorregado do pé durante o voo descontrolado desde Meereen e deixara a outra perto da gruta de Drogon, preferindo ir descalça a meio calçada. Abandonara o tokar e os véus na arena, e a túnica interior de linho nunca fora feita para suportar os dias quentes e noites frias do mar dothraki. O suor, as ervas e a terra tinham-na enodoado, e Dany arrancara uma faixa da bainha para fazer uma ligadura para a canela. Devo parecer uma coisinha esfarrapada, e esfomeada, pensou, mas se os dias permanecerem quentes não congelarei.
A estadia fora solitária, e passara a maior parte magoada e esfomeada... mas apesar de tudo fora ali estranhamente feliz. Algumas dores, uma barriga vazia, noites enregeladas... que importa quando se pode voar? Fá-lo-ia tudo de novo.
Disse a si própria que Jhiqui e Irri estariam à espera no topo da sua pirâmide em Meereen. A querida escriba Missandei também, e todos os pequenos pajens. Trar-lhe-iam comida, e poderia banhar-se na piscina à sombra do diospireiro. Seria bom voltar a sentir-se limpa. Dany não precisava de um espelho para saber como estava suja.
E também estava faminta. Uma manhã encontrara cebolas silvestres a crescer a meio da encosta sul, e mais tarde nesse mesmo dia descobrira um legume folhoso e vermelho que podia ser uma espécie estranha de couve. Fosse o que fosse, não a deixara doente. Tirando isso, e um peixe que apanhara na lagoa alimentada pela nascente que havia em frente da gruta de Drogon, sobrevivera o melhor possível com os restos do dragão, com ossos queimados e bocados de carne fumegante, meio esturricada e meio crua. Precisava de mais, bem o sabia. Um dia pontapeara um crânio rachado de ovelha com a parte lateral de um pé descalço e fizera-o rolar pela colina abaixo. E, ao vê-lo descer aos saltos a íngreme vertente até ao mar de erva lá em baixo, apercebera-se de que tinha de o seguir.