A irritação de Jon veio ao de cima.
— Seguiram pior do que isso. O Velho Urso deixou ao seu sucessor algumas notas de aviso sobre certos homens. Temos um cozinheiro na Torre Sombria que gostava de violar septãs. Queimava uma estrela de sete pontas na sua pele por cada uma. O braço direito é só estrelas do pulso ao cotovelo, e também tem estrelas a marcar-lhe as barrigas das pernas.
Em Atalaialeste temos um homem que incendiou a casa do pai e trancou a porta. Toda a sua família morreu queimada, todos os nove. Independentemente do que o Cetim tenha feito em Vilavelha, é agora nosso irmão e será o meu escudeiro.
O Septão Cellador bebeu um pouco de vinho. Othell Yarwyck apunhalou uma salsicha com o punhal. Bowen Marsh corou. O corvo bateu as asas e disse: “Grão, grão, mata.” Por fim, o Senhor Intendente pigarreou.
— Vossa senhoria saberá o que é melhor, de certeza. Posso perguntar o que se faz àqueles cadáveres nas celas de gelo? Deixam os homens intranquilos. E mantê-los guardados? Decerto que é um desperdício de dois bons homens, a menos que temais que eles…
— … se levantem? Rezo para que o façam.
O Septão Cellador empalideceu.
— Que os Sete nos salvem. — Vinho escorreu-lhe pelo queixo numa fita vermelha. — Senhor comandante, as criaturas são coisas monstruosas e antinaturais. Abominações aos olhos dos deuses. Vós… vós não podeis querer tentar falar com elas.
— Será que elas podem falar? — perguntou Jon Snow. — Acho que não, mas não posso afirmar saber. Até podem ser monstros, mas eram homens antes de morrerem. Quanto resta? Aquela que eu matei estava decidida a matar o Senhor Comandante Mormont. Era claro que se lembrava de quem ele era e de onde o encontraria. — Jon não duvidava de que o Meistre Armon compreenderia as suas intenções; Sam Tarly ficaria aterrorizado, mas também teria compreendido. — O senhor meu pai costumava dizer-me que um homem tem de conhecer os seus inimigos. Pouco compreendemos sobre as criaturas, e menos sobre os Outros. Precisamos de aprender.
Aquela resposta não lhes agradou. O Septão Cellador afagou o cristal que lhe pendia do pescoço e disse:
— Julgo que isso é muito insensato, Lorde Snow. Rezarei à Velha para que erga a sua lâmpada brilhante e vos leve pelo caminho da sabedoria.
A paciência de Jon Snow estava esgotada.
— Benefi ciaríamos todos de um pouco mais de sabedoria, certamente. — Não sabes nada, Jon Snow. — Bom, falamos de Val?
— Então é verdade? — disse Marsh. — Libertaste-la.
— Para lá da Muralha.
O Septão Cellador susteve a respiração.
— A prisioneira do rei. Sua Graça ficará muito furioso quando descobrir que ela se foi.
— Val regressará. — Antes de Stannis, se os deuses forem bons.
— Como podeis saber isso? — quis saber Bowen Marsh.
— Ela disse que regressaria.
— E se mentiu? Se deparar com contrariedades?
— Ora, nesse caso tereis a hipótese de escolher um senhor comandante mais do vosso agrado. Até essa altura, temo que tenhais de me tolerar.
— Jon bebeu um gole de cerveja. — Mandei-a procurar Tormund Terror dos Gigantes e levar-lhe a minha oferta.
— Se pudermos saber, que oferta é essa?
— A mesma que fi z em Vila Toupeira. Comida, abrigo e paz, se quiser juntar as suas forças às nossas, combater o nosso inimigo comum, ajudar a defender a Muralha.
Bowen Marsh não pareceu surpreendido.
— Pretendeis deixá-lo passar. — A sua voz sugeria que sempre o soubera. — Abrir-lhe os portões, a ele e aos seus seguidores. Centenas, milhares.
— Se lhe restarem tantos.
O Septão Cellador fez o sinal da estrela. Othell Yarwyck soltou um grunhido. Bowen Marsh disse:
— Há quem talvez chame a isto traição. Estes homens são selvagens.
Assaltantes, violadores, mais animais do que homens.
— Tormund não é nenhuma dessas coisas — disse Jon — não o é mais que Mance Rayder. Mas mesmo se todas as palavras que dizeis fossem verdadeiras, eles continuariam a ser homens, Bowen. Homens vivos, humanos como vós e eu. O inverno está a chegar, senhores, e quando chegar nós, os vivos, teremos de nos unir contra os mortos.
— Snow — gritou o corvo do Lorde Mormont. — Snow, Snow.
Jon ignorou-o.
— Temos vindo a interrogar os selvagens que trouxemos da mata.
Vários contaram uma história interessante, sobre uma bruxa da floresta chamada Mãe Toupeira.
— Mãe Toupeira? — disse Bowen Marsh. — Um nome improvável.
— Supostamente terá vivido numa toca por baixo de uma árvore oca.
Seja qual for a verdade que há nisso, ela teve uma visão de uma frota de navios que viria levar o povo livre para a segurança do outro lado do mar estreito. Milhares daqueles que fugiram à batalha estavam sufi cientemente desesperados para acreditar nela. A Mãe Toupeira levou-os para Larduro, para aí rezarem e esperarem a salvação vinda do outro lado do mar.
Othell Yarwyck franziu o sobrolho.
— Eu não sou nenhum patrulheiro, mas… diz-se que Larduro é um lugar terrível. Amaldiçoado. Até o vosso tio costumava dizer isso, Lorde Snow. Porque haveriam de ir para lá?
Jon tinha um mapa na sua frente em cima da mesa. Virou-o para que os outros pudessem ver.
— Larduro fica numa baía abrigada, e tem um porto natural suficientemente profundo para os maiores navios que existem. Há fartura de madeira e pedra na zona. As águas estão repletas de peixes, e há colónias de focas e vacas marinhas lá perto.
— Tudo isso é verdade, não duvido — disse Yarwyck — mas não é um sítio onde eu quisesse passar uma noite. Conheceis a lenda.
Conhecia. Larduro estivera a meio caminho de se tornar uma vila, a única verdadeira vila a norte da Muralha, até à noite, seiscentos anos antes, em que o inferno a engolira. O seu povo fora levado para a escravatura ou massacrado para ser comido, dependendo de em qual das versões da história se acreditava, as casas e edifícios públicos tinham sido consumidos num incêndio que ardera tão fortemente que os vigias na Muralha, muito a sul, tinham julgado que o Sol estava a erguer-se a norte. Depois disso, tinham chovido cinzas tanto sobre a floresta assombrada como sobre o Mar Tremente durante quase meio ano. Mercadores relataram ter encontrado apenas uma devastação de pesadelo onde Larduro se erguera, uma paisagem de árvores carbonizadas e ossos queimados, águas sufocadas por cadáveres inchados, guinchos de congelar o sangue a ecoar vindos das entradas das cavernas que perfuravam o grande penhasco que se erguia acima do povoado.
Seis séculos tinham chegado e partido desde essa noite, mas Larduro ainda era evitado. Jon fora informado de que a natureza reclamara o local, mas os patrulheiros afirmavam que as ruínas cobertas de vegetação eram assombradas por vampiros e demónios e fantasmas ardentes com um gosto pouco saudável por sangue.
— Também não é o tipo de refúgio que eu escolheria — disse Jon — mas a Mãe Toupeira foi ouvida a pregar que o povo livre encontraria salvação onde antes encontrara a perdição.
O Septão Cellador espetou os lábios.
— A salvação só pode ser encontrada através dos Sete. Essa bruxa condenou-os a todos.
— E salvou a Muralha, talvez — disse Bowen Marsh. — É de inimigos que estamos a falar. Eles que rezem entre as ruínas, e se os seus deuses enviarem navios para os levarem para um mundo melhor, que lhes faça bom proveito. Neste mundo não temos comida para os alimentar.
Jon fletiu os dedos da mão da espada.
— As galés de Cotter Pyke passam por Larduro de vez em quando.
Ele diz-me que não há aí nenhum abrigo além das grutas. As grutas gritadoras, segundo lhes chamam os homens dele. A Mãe Toupeira e aqueles que a seguiram morrerão aí, de frio e de fome. Centenas deles. Milhares.
— Milhares de inimigos. Milhares de selvagens.
Milhares de pessoas, pensou Jon. Homens, mulheres, crianças. A ira ergueu-se dentro dele, mas quando falou a sua voz estava calma e fria.