— Sois assim tão cego, ou será que não quereis ver? Que julgais vós que irá acontecer quando todos esses inimigos estiverem mortos?
Por cima da porta o corvo resmungou:
— Mortos, mortos, mortos.
— Deixai que vos diga o que acontecerá — disse Jon. — Os mortos voltarão a erguer-se, às centenas e aos milhares. Erguer-se-ão como criaturas, com mãos pretas e olhos azuis claros, e virão contra nós. — Pôs-se em pé, com os dedos da mão da espada a abrirem-se e a fecharem-se. — Tendes a minha licença para vos irdes embora.
O Septão Cellador ergueu-se de cara cinzenta e a suar, Othell Yarwyck rigidamente, Bowen Marsh de lábios apertados e pálido.
— Obrigado pelo tempo dispensado, Lorde Snow. — E saíram sem mais palavra.
TYRION
A porca tinha melhor feitio do que alguns dos cavalos que tinha montado.
Paciente e de patas seguras, aceitou Tyrion quase sem um guincho quando lhe subiu para o dorso e permaneceu imóvel enquanto ele estendia a mão para o escudo e a lança. Mas quando lhe pegou nas rédeas e lhe encostou os pés aos flancos mexeu-se de imediato. O seu nome era Bonita, abreviatura de Porca Bonita, e fora treinada para usar sela e arreios desde os tempos de leitoa.
A armadura de madeira pintada estridulou quando a Bonita percorreu o convés a trote. Os sovacos de Tyrion formigavam com transpiração, e uma gota de suor escorria-lhe pela cicatriz abaixo, sob o elmo grande de mais que lhe servia mal, mas por um absurdo momento sentiu-se quase como Jaime, a cavalgar de lança na mão para um campo de torneios, com a armadura dourada a relampejar ao sol.
Quando as gargalhadas começaram, o sonho dissolveu-se. Não era campeão algum, só um anão montado num porco agarrado a um pau, a cabriolar para divertimento de uns irrequietos marinheiros ensopados em rum, na esperança de lhes melhorar o estado de espírito. Algures no inferno, o pai fervia e Joffrey soltava risadinhas. Tyrion sentia os olhos frios e mortos deles a observar aquela farsa de saltimbanco, tão ávidos como a tripulação do Selaesori Qhoran.
E agora aí vinha a sua adversária. Centava montava o grande cão cinzento, fazendo oscilar ebriamente a lança listada quando o animal percorreu o convés aos saltos. O escudo e a armadura tinham sido pintados de vermelho, apesar de a tinta estar lascada e a desvanecer-se; a armadura de Tyrion era azul. Minha, não. Do Tostão. Rezo para que nunca seja minha.
Tyrion deu com os calcanhares nos quadris de Bonita para a pôr a ritmo de arremetida, enquanto os marinheiros o incentivavam com aclamações e gritos. Não poderia ter afirmado com certeza se estariam a gritar encorajamentos ou a troçar dele, mas fazia uma ideia razoável. Porque raio me deixei convencer a participar nesta farsa?
Mas conhecia a resposta. Havia já doze dias que o navio estava preso numa calmaria no Golfo da Mágoa. O humor da tripulação andava feio, e era provável que se tornasse mais feio quando a ração diária de rum se esgotasse. Havia um número limitado de horas que um homem podia dedicar a remendar velas, a calafetar vazamentos e a pescar. Jorah Mormont ouvira os resmungos sobre como a sorte dos anões lhes falhara. Embora o cozinheiro do navio ainda desse uma esfregadela à cabeça de Tyrion de vez em quando, na esperança de isso poder levantar algum vento, os outros tinham passado a deitar-lhe olhares venenosos sempre que atravessava os seus caminhos. A sorte de Centava era ainda pior, visto que o cozinheiro espalhara a ideia de que apertar os seios de uma anã talvez fosse precisamente o que lhes faria recuperar a sorte. Também se começara a referir à Porca Bonita como “Bacon,” um gracejo que parecera muito mais engraçado quando fora Tyrion a fazê-lo.
— Temos de os fazer rir — dissera Centava, suplicante. — Temos de os fazer gostar de nós. Se lhes apresentarmos um espetáculo, isso ajudá-los-á a esquecer. Por favor, senhor. — E de algum modo, de alguma forma, de alguma maneira, ele consentira. Deve ter sido o rum. O vinho do capitão fora a primeira coisa a esgotar-se. Tyrion Lannister descobrira que é possível ficar bêbado muito mais depressa com rum do que com vinho.
E assim deu por si vestido com a armadura de madeira pintada de Tostão, montado na porca de Tostão, enquanto a irmã de Tostão o instruía nas minudências da justa a fingir que fora o seu ganha-pão. Havia aí uma certa deliciosa ironia, considerando que Tyrion quase perdera uma vez a cabeça por se recusar a montar o cão para retorcido divertimento do sobrinho. Mas, sem que soubesse porquê, achava difícil apreciar o humor da coisa montado na porca.
A lança de Centava desceu mesmo a tempo da sua ponta romba lhe raspar no ombro; a dele oscilou quando a fez descer e colidir ruidosamente com um canto do escudo dela. A rapariga manteve-se sentada. Ele não.
Mas enfim, era o que devia fazer.
Fácil como cair de um porco… se bem que cair daquele porco em particular fosse mais difícil do que parecia. Tyrion enrolou-se numa bola enquanto caía, lembrando-se da aula, mas mesmo assim atingiu o convés com um forte estrondo e mordeu a língua com tal força que lhe soube a sangue. Sentiu-se como se tivesse de novo doze anos e estivesse a cabriolar ao longo da mesa de jantar do grande salão de Rochedo Casterly.
Nessa altura tinha o tio Gerion por perto para elogiar os seus esforços, em vez de marinheiros carrancudos. O riso destes pareceu escasso e tenso, comparado com as grandes gargalhadas que tinham acolhido as palhaçadas de Tostão e Centava no banquete de casamento de Joffrey, e alguns silvaram-lhe, zangados.
— Sem-Nariz, tu cavalgas como és, feio — gritou um homem do castelo de popa. — Não deves ter tomates, p’a deixar que uma moça te ganhe.
— Ele apostou em mim, decidiu Tyrion. Deixou o insulto passar. Ouvira pior nos seus tempos.
A armadura de madeira tornava complicado levantar-se. Deu por si a esbracejar como uma tartaruga caída de costas. Isso, ao menos, pôs alguns dos marinheiros às gargalhadas. Pena não ter partido uma perna, isso haveria de pô-los a uivar de riso. E se tivessem estado naquela latrina quando trespassei as tripas do meu pai, podiam ter rido o sufi ciente para cagarem as bragas como ele fez. Mas qualquer coisa serve para manter os malditos bastardos simpáticos.
Por fim, Jorah Mormont apiedou-se das dificuldades de Tyrion e puxou-o, pondo-o em pé.
— Pareceste um idiota.
Era essa a intenção.
— É difícil parecer um herói quando se está montado num porco.
— Deve ser por isso que eu não me ponho em cima de porcos.
Tyrion desafivelou o elmo, tirou-o e cuspiu borda fora uma escarreta rosada de sangue.
— Sinto-me como se tivesse arrancado meia língua à dentada.
— Da próxima vez morde com mais força. — Sor Jorah encolheu os ombros. — Em boa verdade, já vi piores justadores.
Aquilo foi um elogio?
— Caí do maldito porco e mordi a língua. O que é que pode ser pior do que isso?
— Apanhar com uma lasca no olho e morrer.
Centava saltara de cima do cão, um grande brutamontes cinzento chamado Trincão.
— A ideia não é justar bem, Hugor. — Tinha sempre o cuidado de lhe chamar Hugor quando alguém pudesse ouvir. — A ideia é fazê-los rir e atirar-nos moedas.
Fraco pagamento pelo sangue e as nódoas negras, pensou Tyrion, mas guardou também isso para si.
— Também falhámos nisso. Ninguém atirou moedas. — Nem um centavo, nem um tostão.
— Atirarão quando melhorarmos. — Centava tirou o elmo. O cabelo, castanho como a pelagem de um rato, derramou-se-lhe até às orelhas.
Os seus olhos também eram castanhos por baixo de uma pesada testa, as bochechas eram lisas e estavam coradas. Tirou algumas bolotas de um saco de couro para a Porca Bonita. A porca comeu-as da sua mão, guinchando, contente. — Quando atuarmos para a Rainha Daenerys, vai chover prata, vais ver.
Alguns dos marinheiros estavam a gritar-lhes e a bater com os calcanhares no convés, exigindo outra justa. O cozinheiro do navio era o mais ruidoso, como sempre. Tyrion aprendera a desprezar aquele homem, mesmo apesar de ser o único jogador meio decente de cyvasse que havia na coca.