Centava não teve tanta sorte, mas Tyrion abraçou-a na mesma enquanto o casco do navio rangia e gemia de forma alarmante à volta deles, como uma pipa prestes a rebentar.
Perto da meia-noite, os ventos finalmente amainaram, e o mar acalmou o suficiente para Tyrion voltar a subir ao convés. O que aí viu não o tranquilizou. A coca estava à deriva num mar de vidro de dragão sob uma abóbada de estrelas, mas a toda a volta a tempestade continuava a enfurecer-se. Para leste, oeste, norte, sul, para onde quer que olhasse as nuvens erguiam-se como montanhas negras, cujas encostas precipitosas e colossais penhascos ganhavam vida com relâmpagos azuis e purpúreos. Não caía qualquer chuva mas, debaixo dos seus pés, o convés estava escorregadio e húmido.
Tyrion ouviu alguém a gritar de baixo, uma voz fina e aguda, histérica de medo. Também conseguia ouvir Moqorro. O sacerdote vermelho estava em pé no castelo de proa, encarando a tempestade, com o bordão erguido acima da cabeça enquanto trovejava uma prece. A meia-nau, uma dúzia de marinheiros e dois dos dedos fogosos estavam a lutar com cabos emaranhados e tela ensopada, mas Tyrion nunca soube se estariam a tentar voltar a içar a vela ou a arreá-la. Fosse o que fosse que os homens estavam a tentar fazer, pareceu-lhe uma péssima ideia. E era mesmo.
O vento regressou como uma ameaça sussurrada, frio e húmido, roçando-lhe na cara, fazendo esvoaçar a vela húmida, rodopiando e puxando pelas vestes escarlates de Moqorro. Um instinto qualquer levou Tyrion a agarrar-se à amurada mais próxima, e mesmo a tempo. No espaço de três segundos, a pequena brisa transformou-se numa ventania uivante. Moqorro gritou qualquer coisa, e chamas verdes saltaram da goela do dragão no topo do seu bordão e foram desaparecer na noite. Então chegaram as chuvas, negras e cegantes, e tanto o castelo de proa como o de popa desapareceram por trás de uma muralha de água. Algo enorme esvoaçou por cima da cabeça de Tyrion, e o anão olhou para cima a tempo de ver a vela a enfunar-se, ainda com dois homens a pender dos cabos. De seguida, ouviu um estalo. Oh, maldito inferno, teve tempo de pensar, aquilo só pode ter sido o mastro.
Encontrou um cabo e puxou-o, lutando por avançar na direção da escotilha a fim de se abrigar em baixo, fora da tempestade, mas uma rajada de vento fê-lo perder o apoio dos pés e uma segunda atirou-o contra a amurada e aí o deixou agarrado. Chuva chicoteou-lhe a cara, cegando-o. Tinha a boca outra vez cheia de sangue. O navio gemeu e rosnou debaixo dele como um homem com prisão de ventre e fazer força para cagar.
Então, o mastro rebentou.
Tyrion não o chegou a ver, mas ouviu-o. De novo aquele som de estalar e depois um grito de madeira torturada, e de súbito o ar ficou cheio de estilhaços e lascas. Uma não lhe acertou no olho por centímetro e meio, uma segunda foi dar com o seu pescoço, uma terceira espetou-se-lhe na barriga da perna, atravessando botas, bragas e tudo. Gritou. Mas agarrou-se ao cabo, agarrou-se com uma força desesperada que não sabia ter. A viúva disse que este navio nunca chegaria ao seu destino, recordou. Depois riu e riu, com descontrolo e histeria, enquanto o trovão estrondeava, os madeiramentos gemiam e ondas se esmagavam a toda a volta.
Quando a tempestade amainou e os sobreviventes, entre os passageiros e a tripulação, regressaram de gatas ao convés, como pálidos vermes rosados a vir à superfície, contorcendo-se, após uma chuvada, o Selaesori Qhoran era uma coisa quebrada, flutuando meio afundado na água e adornado dez graus para bombordo, com o casco fendido em meia centena de sítios, o porão submerso em água do mar, o mastro transformado numa ruína estilhaçada que não era mais alta do que um anão. Nem a figura de proa escapara; um dos seus braços partira-se, aquele que tinha todos os pergaminhos. Nove homens tinham-se perdido, incluindo um oficial, dois dos dedos fogosos, e o próprio Moqorro.
Terá Benerro visto isto nas suas fogueiras?, perguntou Tyrion a si próprio, quando se apercebeu de que o enorme sacerdote vermelho desaparecera. E Moqorro, terá visto isto?
— A profecia é como uma mula meio treinada — queixou-se a Jorah Mormont. — Parece poder vir a ser útil, mas no momento em que se confia nela, dá-nos um coice na cabeça. Aquela maldita viúva sabia que o navio nunca chegaria ao seu destino, avisou-nos disso, disse que Benerro o tinha visto nas suas fogueiras, só que eu julguei que isso queria dizer… bem, que importa? — A boca torceu-se-lhe. — O que queria realmente dizer era que uma tempestade grande como o raio nos ia transformar o mastro em acendalhas para ficarmos à deriva, sem rumo, no Golfo da Mágoa, até se nos esgotar a comida e começarmos a comer-nos uns aos outros. Quem te parece que vão trinchar primeiro… a porca, o cão, ou eu?
— O mais ruidoso, diria eu.
O capitão morreu no dia seguinte, o cozinheiro do navio três noites mais tarde. O restante da tripulação foi só com grande esforço que manteve o destroço a flutuar. O oficial que assumira o comando calculou que estivessem algures ao largo da ponta meridional da Ilha dos Cedros. Quando baixou os botes do navio para os rebocar na direção da terra mais próxima, um deles afundou-se e os homens que estavam no outro cortaram o cabo e afastaram-se rumo a norte, abandonando a coca e todos os companheiros.
— Escravos — disse Jorah Mormont, com desprezo.
O grande cavaleiro passara a tempestade a dormir, de acordo com o que dizia. Tyrion tinha as suas dúvidas, mas guardou-as para si. Um dia podia querer morder alguém na perna, e para isso era preciso ter-se dentes.
Mormont pareceu satisfeito por ignorar o desacordo entre ambos, portanto Tyrion decidiu fingir que não acontecera.
Derivaram durante dezanove dias, enquanto a comida e a água se iam reduzindo. O sol espancava-os, inexorável. Centava aninhava-se na cabina com o cão e a porca e Tyrion levava-lhe comida, coxeando sobre a sua coxa ligada e farejando o ferimento à noite. Quando não tinha mais nada para fazer também picava os dedos dos pés e das mãos. Sor Jorah fazia questão de afiar a espada todos os dias, amolando a ponta até a deixar a cintilar. Os três dedos fogosos que restavam acendiam a fogueira noturna quando o Sol se punha, mas usavam as ornamentadas armaduras enquanto lideravam as preces da tripulação, e tinham as lanças à mão. E nem um único marinheiro tentou esfregar a cabeça de nenhum dos anões.
— Não devíamos voltar a justar para eles verem? — perguntou Centava uma noite.
— É melhor não — disse Tyrion. — Isso só ia servir para lhes fazer lembrar que temos um belo porco rechonchudo. — Isto muito embora a Bonita se fosse tornando menos rechonchuda a cada dia que passava, e Trincão fosse só pele e osso.
Nessa noite, voltou a sonhar que estava de regresso a Porto Real, com uma besta na mão.
— Para onde quer que as rameiras vão — disse o Lorde Tywin, mas quando o dedo de Tyrion se contraiu e a corda da besta soltou um trum, foi Centava quem ficou com o dardo enterrado na barriga.
Acordou ao som dos gritos.
O convés movia-se debaixo do corpo, e durante meio segundo ficou tão confuso que julgou estar de volta à Tímida Donzela. Um bafo a merda de porco devolveu-lhe o juízo. As Mágoas estavam agora para trás de si, a meio mundo de distância, e as alegrias desses tempos também. Lembrou-se do belo aspeto de Lemore depois dos seus banhos matinais, com gotas de água a reluzir na pele nua, mas ali a única donzela era a sua pobre Centava, a pequena anã atrofiada.