Levou a tigela para o fundo do salão e arranjou lugar num banco vazio, a metros do archote mais próximo. De dia ou de noite, os bancos abaixo do sal nunca estavam menos de meio cheios de homens a beber, a jogar aos dados, a conversar ou a dormir vestidos em cantos sossegados.
Os seus sargentos acordavam-nos ao pontapé quando chegava a sua vez de se voltarem a encolher nos mantos e percorrer as muralhas. Mas nenhum homem entre eles acolheria bem a companhia de Theon Vira-Mantos, e ele
tampouco tinha grande gosto pelas deles.
As papas estavam cinzentas e aguadas, e pô-las de parte depois da terceira colherada, deixando que coagulassem na tigela. Na mesa seguinte, homens estavam a discutir sobre a tempestade interrogando-se em voz alta sobre quanto tempo a neve levaria a cair.
— Todo o dia e toda a noite, e pode ser ainda mais tempo — insistia um arqueiro grande de barba negra com um machado Cerwyn cosido ao peito. Alguns dos homens mais velhos falavam de outros nevões e insistiam que aquilo não passava de uma nevascazinha quando comparada com o que tinham visto nos invernos da juventude. Os homens do rio estavam aterrados. Não têm qualquer gosto pela neve e o frio, estas espadas do sul.
Homens que entravam no salão aninhavam-se junto aos fogos ou batiam palmas por cima de braseiros incandescentes enquanto os mantos pendiam a pingar de cavilhas junto da porta.
O ar estava denso e fumarento e formara-se uma crosta por cima das suas papas quando uma voz de mulher atrás dele disse:
— Theon Greyjoy?
O meu nome é Cheirete, quase respondeu.
— Que queres?
Ela sentou-se a seu lado, a cavalo no banco, e afastou dos olhos uma despenteada madeixa de cabelo castanho-arruivado.
— Porque comeis sozinho, senhor? Vinde, levantai-vos, juntai-vos à dança.
Theon regressou às papas.
— Eu não danço. — O Príncipe de Winterfell fora um dançarino elegante, mas o Cheirete, com os dedos que lhe faltavam, seria grotesco. — Deixa-me em paz. Não tenho dinheiro.
A mulher fez um sorriso torto.
— Tomais-me por uma rameira? — Era uma das lavadeiras do cantor, a alta e escanzelada, demasiado esguia e coriácea para lhe chamarem bonita… se bem que tivesse havido uma altura em que Theon a teria derrubado na mesma, para ver como era ter aquelas longas pernas enroladas à sua volta. — Para que me serve aqui o dinheiro? Que compraria com ele, um bocado de neve? — Ela riu-se. — Podíeis pagar-me com um sorriso. Nunca vos vi sorrir, nem mesmo durante o banquete de casamento da vossa irmã.
— A Senhora Arya não é minha irmã. — E eu não sorrio, podia ter-lhe dito. Ramsay odiava os meus sorrisos, portanto atirou-me um martelo aos dentes. Mal consigo comer. — Nunca foi minha irmã.
— Mas é uma donzela bonita.
Eu nunca fui bela como Sansa, mas todos diziam que era bonita. As palavras de Jeyne pareceram ecoar na sua cabeça, ao ritmo dos tambores que duas das outras raparigas de Abel estavam a tocar. Outra puxara o Walder Pequeno Frey para cima da mesa a fim de lhe ensinar a dançar. Todos os homens se riam.
— Deixa-me em paz — disse Theon.
— Não sou do agrado do senhor? Podia mandar-vos a Myrtle, se quiserdes. Ou a Holly, talvez gostásseis mais dela. Todos os homens gostam da Holly. Elas também não são minhas irmãs, mas são simpáticas. — A mulher aproximou-se mais. O seu hálito cheirava a vinho. — Se não tendes um sorriso para mim, contai-me como capturastes Winterfell. O Abel poria a história numa canção, e vós viveríeis para sempre.
— Como traidor. Como Theon Vira-Mantos.
— E porque não Theon, o Esperto? Foi um feito audaz, segundo ouvimos dizer. Quantos homens tínheis? Uma centena? Cinquenta?
Menos.
— Foi uma loucura.
— Gloriosa loucura. Stannis tem cinco mil, segundo dizem, mas Abel diz que nem dez vezes mais conseguiriam abrir uma brecha nestas muralhas. Portanto como foi que vós entrastes, senhor? Tínheis alguma maneira secreta?
Tinha cordas, pensou Theon. Tinha fateixas. Tinha a escuridão do
meu lado, e a surpresa. O castelo tinha apenas uma guarnição ligeira, e eu apanhei-os desprevenidos. Mas não disse nada disso. Se Abel fi zesse uma canção sobre ele, o mais certo era Ramsay furar-lhe os tímpanos para se assegurar de que nunca a ouviria.
— Podeis confiar em mim, senhor. O Abel confia. — A lavadeira pôs a mão sobre a dele. As mãos de Theon estavam enluvadas em lã e couro. As dela estavam nuas e tinham dedos longos, rudes, com unhas roídas até ao sabugo. — Não chegastes a perguntar-me o nome. É Rowan.
Theon afastou-se bruscamente. Aquilo era um truque, sabia que era.
Foi Ramsay que a enviou. É outra das suas brincadeiras, como a Kyra com as chaves. Uma alegre brincadeira, nada mais. Quer que eu fuja, para poder punir-me.
Apeteceu-lhe bater-lhe, arrancar-lhe aquele sorriso trocista da cara.
Apeteceu-lhe beijá-la, fodê-la ali mesmo na mesa e obrigá-la a gritar o seu nome. Mas sabia que não se atrevia a tocar-lhe, em fúria ou em desejo.
Cheirete, Cheirete, o meu nome é Cheirete. Não posso esquecer o meu nome.
Pôs-se em pé de um salto, e abriu caminho sem uma palavra até às portas, manquejando sobre os pés mutilados.
Lá fora, a neve continuava a cair. Húmida, pesada, silenciosa, já começara a cobrir os passos deixados pelos homens que iam e vinham do salão. Os montes de neve acumulada chegavam-lhe quase ao topo das botas. Na mata de lobos deve estar mais profunda… e na estrada de rei, onde o vento sopra, não haverá forma de lhe fugir. No pátio travava-se uma batalha; Ryswells a fazer chover bolas de neve sobre rapazes de Vila Acidentada.
Lá em cima, viam-se alguns escudeiros a construir bonecos de neve nas ameias. Estavam a armá-los com lanças e escudos, pondo-lhes meios elmos de ferro nas cabeças, e dispondo-os ao longo da muralha interior, uma fi leira de sentinelas de neve.
— O Senhor Inverno juntou-se-nos com os seus recrutas — brincou uma das sentinelas que estava à porta do Grande Salão… até que viu a cara de Theon, e se apercebeu de quem era o homem com quem estava a falar.
Depois virou a cabeça e cuspiu.
Atrás das tendas, os grandes corcéis dos cavaleiros de Porto Branco e das Gémeas tremiam nas suas fi leiras de cavalos. Ramsay queimara os estábulos quando saqueara Winterfell, portanto o pai construíra outros novos duas vezes maiores do que os antigos, para acolher os cavalos de guerra e palafréns dos senhores e cavaleiros seus vassalos. O resto dos cavalos estava amarrado nos pátios. Palafreneiros encapuzados deslocavam-se entre eles, cobrindo-os com mantas para os manterem quentes.
Theon dirigiu-se mais para o interior das partes arruinadas do castelo. Enquanto avançava pela pedra estilhaçada que fora em tempos o torreão do Meistre Luwin, corvos observavam-no do rasgão na parede, mais acima, resmungando uns com os outros. De vez em quando, um lançava um grito roufenho. Parou na entrada de um quarto que em tempos fora seu (enterrado até aos tornozelos em neve que entrara por uma janela partida), visitou as ruínas da forja de Mikken e do septo da Senhora Catelyn.
Sob a Torre Queimada, passou por Rickard Ryswell, que tinha o nariz enterrado no pescoço de outra das lavadeiras de Abel, a rechonchuda com bochechas rosadas e nariz arrebitado. A rapariga estava descalça na neve, envolta num manto de peles. Theon achou que provavelmente estaria nua por baixo. Quando o viu, disse qualquer coisa ao Ryswell que o fez soltar uma gargalhada.
Theon afastou-se pesadamente deles. Havia uma escada atrás dos estábulos, raramente usada; foi para aí que os pés o levaram. Os degraus eram íngremes e traiçoeiros. Subiu com cuidado, e deu por si sozinho nas ameias da muralha interior, bem longe dos escudeiros e dos seus bonecos de neve.
Ninguém lhe dera liberdade de castelo, mas também ninguém lhe negara.