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Quebrou o jejum com sardinhas, fritadas em óleo de pimenta até ficarem estaladiças e servidas tão quentes que lhe queimaram os dedos. Limpou o óleo remanescente com um bocado de pão arrancado à ponta do pão matinal de Umma e empurrou tudo para baixo com um copo de vinho aguado, saboreando os sabores e os cheiros, a sensação áspera da crosta sob os dedos, o modo como o óleo escorregava, a picada da pimenta quente quando chegou ao arranhão meio sarado que tinha nas costas da mão. Ouve, cheira, saboreia, sente, lembrou a si própria. Há muitas maneiras de conhecer o mundo para aqueles que não conseguem ver.

Alguém entrara na sala atrás dela, deslocando-se sobre suaves chi­nelos almofadados silenciosos como um rato. As narinas dilataram-se-lhe. O homem amável. Os homens tinham um cheiro diferente do das mulhe­res, e havia também um vestígio de laranja no ar. O sacerdote gostava de mascar cascas de laranja para lhe melhorar o hálito, sempre que conseguia arranjá-las.

—  E quem és tu hoje? — ouviu-o perguntar, enquanto ocupava o seu lugar à cabeceira da mesa. Tap, tap, ouviu, e depois um minúsculo som crepitante. Está a partir o primeiro ovo.

—  Ninguém — respondeu.

—  Mentira. Eu conheço-te. És aquela pedinte cega.

—   Beth. — Conhecera uma Beth em tempos, em Winterfell, quando era Arya Stark. Talvez fosse por isso que escolhera o nome. Ou talvez fosse apenas por se conjugar tão bem com "cega".

—    Pobre criança — disse o homem amável. — Gostavas de ter os olhos de volta? Pede, e verás.

Fazia a mesma pergunta todas as manhãs.

—   Quero-os amanhã. Hoje não. — A sua cara era água parada, es­condendo tudo, revelando nada.

—   Como queiras. — Conseguia ouvi-lo a descascar o ovo, e depois escutou um ténue tinido de prata quando pegou na colher de sal. Gostava dos ovos bem salgados. — Onde foi a minha pobre rapariga cega pedir ontem à noite?

—  A Estalagem da Enguia Verde.

—   E que três coisas novas sabes tu, que não soubesses quando nos deixaste pela última vez?

—   O Senhor do Mar continua doente.

—   Essa não é novidade nenhuma. O Senhor do Mar estava doente ontem, e continuará doente amanhã.

—   Ou morto.

—   Quando estiver morto, isso será algo novo.

Quando estiver morto, haverá uma escolha e as Jacas surgirão. Era as­sim que as coisas se passavam em Bravos. Em Westeros, a um rei morto sucedia o filho mais velho, mas os bravosianos não tinham reis.

—  Tormo Fregar será o novo senhor do mar.

—  E isso o que se diz na Estalagem da Enguia Verde?

—   Sim.

O homem amável deu uma dentada no ovo. A rapariga ouviu-o a mastigar. Nunca falava com a boca cheia. Engoliu e disse:

—   Há homens que dizem que há sabedoria no vinho. Esses homens são parvos. Noutras estalagens outros nomes andam a ser atirados ao ar, não duvides. — Deu outra dentada no ovo, mastigou, engoliu. — Que três novas coisas tu sabes, que não soubesses antes?

—  Sei que alguns homens andam a dizer que Tormo Fregar será cer­tamente o novo senhor do mar — respondeu. — Alguns bêbados.

—   Está melhor. E que mais sabes tu?

Está a nevar nas terras fluviais, em Westeros, quase disse. Mas ele ter-lhe-ia perguntado como sabia disso, e não lhe parecia que fosse gostar da resposta. Mordeu o lábio, pensando na noite anterior.

—   A rameira SVrone está à espera de bebé. Não tem a certeza de quem é o pai, mas pensa que pode ter sido aquele mercenário tyroshi que matou.

—   E bom saber disso. Que mais?

—  A Rainha Bacalhau escolheu uma nova Sereia, para ocupar o lugar daquela que se afogou. É filha de uma criada dos Prestayn, com treze anos e sem vintém, mas adorável.

—  Todas elas o são, a princípio — disse o sacerdote — mas não podes saber que é adorável a menos que a tenhas visto com os teus próprios olhos, e não tens nenhuns. Quem és, pequena?

—  Ninguém.

—   Quem eu vejo é a Beth Cega, a pedinte. É uma mentirosa desgra­çada, essa moça. Trata dos teus deveres. Valar morghulis.

—   Valar dohaeris. — Pegou na tigela e no copo, na faca e na colher, e pôs-se em pé. A última coisa em que pegou foi na bengala. Tinha metro e meio de comprimento, era esguia e flexível, tão grossa como o seu polegar, com couro enrolado ao cabo a trinta centímetros do topo. É melhor que olhos, depois de aprenderes a usá-la, dissera-lhe a criança abandonada.

Isso era uma mentira. Mentiam-lhe com frequência, para a testar.

Nenhum pau era melhor do que um par de olhos. Mas era bom tê-lo, por­tanto mantinha-o sempre por perto. Umma habituara-se a chamar-lhe Pau, mas os nomes não importavam. Ela era ela. Ninguém. Não sou ninguém. Só uma rapariga cega, só uma criada d'0 das Muitas Caras.

Todas as noites, ao jantar, a criança abandonada trazia-lhe um copo de leite e dizia-lhe para o beber. A bebida tinha um sabor estranho e amar­go que a rapariga cega depressa aprendeu a abominar. Mesmo o ténue chei­ro que a prevenia do que era antes de lhe tocar a língua depressa lhe deu vómitos, mas esvaziou o copo na mesma.

—   Durante quanto tempo tenho de ser cega? — perguntava.

—  Até que a escuridão seja tão boa para ti como a luz — dizia a crian­ça abandonada — ou até nos pedires os olhos de volta. Pede, e verás.

E depois mandais-me embora. Antes ser cega do que isso. Não a obri­gariam a ceder.

No dia em que acordara cega, a criança abandonada pegara-lhe na mão e levara-a pelas caves e túneis do rochedo sobre o qual a Casa do Preto e Branco fora construída, e pela íngreme escada de pedra que levava ao templo propriamente dito.

—   Conta os degraus enquanto sobes — dissera. — Roça com os de­dos na parede. Há aí marcas, invisíveis ao olhar, claras ao toque.

Essa fora a sua primeira lição. Houvera muitas mais.

Venenos e poções eram para as tardes. Tinha o cheiro, o tato e o pa­ladar para a ajudarem, mas o tato e o paladar podiam ser perigosos quando se moíam venenos, e com alguns dos preparados mais tóxicos da criança abandonada até o cheiro não era inteiramente seguro. Pontas de miudinhos queimadas e lábios cheios de bolhas tornaram-se-lhe familiares, e uma vez ficara tão doente que não conseguiu manter qualquer comida no estômago durante dias.

O jantar era dedicado a aulas de línguas. A rapariga cega compreen­dia bravosiano e era capaz de falar a língua razoavelmente, até perdera a maior parte do seu sotaque bárbaro, mas o homem amável não estava sa­tisfeito. Insistia que ela tinha de melhorar o seu alto valiriano e de aprender também as línguas de Lys e de Pentos.

A noite jogava o jogo das mentiras com a criança abandonada mas, sem olhos para ver, o jogo era muito diferente. Às vezes a única coisa em que se podia basear era no tom de voz e na escolha de palavras; doutras vezes a criança abandonada deixava que lhe pusesse as mãos na cara. A princípio, o jogo era muito, muito difícil, praticamente impossível... mas mesmo no momento em que estava prestes a chegar ao ponto de gritar de frustração, tudo se tornara muito mais fácil. Aprendera a ouvir as mentiras, a senti-las no jogo de músculos em volta da boca e dos olhos.

Muitos dos seus outros deveres tinham permanecido iguais, mas ao desempenhá-los tropeçava na mobília, ia de encontro a paredes, dei­xava cair bandejas, ficava desamparada e desesperadamente perdida no interior do templo. Uma vez quase caiu de cabeça pelas escadas abaixo, mas Syrio Forel ensinara-lhe equilíbrio noutra vida, quando era uma ra­pariga chamada Arya, e sem saber bem como recuperou e equilibrou-se a tempo.