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Havia noites em que podia ter adormecido a chorar, se ainda fosse Arry, a Doninha ou a Gata, ou até a Arya da Casa Stark... mas ninguém não tinha lágrimas. Sem olhos, mesmo a tarefa mais simples era perigosa. Queimou-se uma dúzia de vezes enquanto trabalhava com Urama nas co­zinhas. Uma vez, a cortar cebolas, cortou o dedo até ao osso. Houve duas vezes em que nem sequer conseguiu encontrar o seu quarto na cave e teve de dormir no chão na base da escada. Todos os recantos e nichos tornavam o templo traiçoeiro, mesmo depois de a rapariga cega ter aprendido a usai- os ouvidos; o modo como os seus passos eram refletidos pelo teto e ecoa­vam em volta das pernas dos trinta grandes deuses de pedra fazia com que as próprias paredes parecessem mover-se, e a lagoa de água negra e parada também fazia coisas estranhas ao som.

— Tens cinco sentidos — dissera o homem amável. — Aprende a usar os outros quatro, e terás menos golpes, nódoas negras e arranhões.

Agora conseguia sentir correntes de ar na pele. Conseguia encontrar as cozinhas pelo cheiro que delas vinha, distinguir os homens das mulheres pelos seus odores. Reconhecia Um ma e os criados e acólitos pelo padrão dos seus passos, era capaz de os distinguir uns dos outros antes de chega­rem suficientemente perto para os cheirar (mas não a criança abandona­da ou o homem amável, os quais quase não faziam um som, a menos que quisessem). As velas a arder no templo também tinham cheiros; mesmo as não aromáticas soltavam ténues espirais de fumo dos pavios. Era como se gritassem, depois de se aprender a usar o nariz.

Os mortos também tinham o seu próprio cheiro. Um dos seus deve­res era encontrá-los no templo todas as manhãs, onde quer que tivessem decidido deitar-se e fechar os olhos depois de beberem da lagoa.

Naquela manhã encontrou dois.

Um homem morrera aos pés do Estranho, com uma única vela a trcmeluzir por cima dele. Conseguiu sentir o calor da vela, e o odor que ela soltava fez-lhe cócegas no nariz. Sabia que a vela ardia com uma cha­ma vermelha escura; para aqueles que tinham olhos, o cadáver pareceria submerso num brilho avermelhado. Antes de chamar os criados para o le­varem, ajoelhou e tateou-lhe a cara, pcrcorrendo-lhe a linha do maxilar, roçando com os dedos pelo seu rosto e nariz, tocando-lhe o cabelo. Cabelo encaracolado e espesso. Uma cara bem-parecida, sem rugas. Ele era novo. Perguntou a si própria o que o teria trazido até ali em busca da dádiva da morte. Era frequente que espadachins moribundos se dirigissem à Casa do Preto e Branco para apressar as suas mortes, mas aquele homem não tinha ferimentos que conseguisse encontrar.

O segundo corpo pertencia a uma velha. Adormecera num sofá de sonhos, num dos nichos ocultos onde velas especiais invocavam visões de coisas amadas e perdidas. Uma morte doce e gentil, gostava o homem amá­vel de dizer. Os dedos disseram-lhe que a velha morrera com um sorriso no rosto. Não estava morta há muito tempo. O seu corpo ainda estava quente ao toque. Tem uma pele tão suave como velho couro fino que tenha sido do­brado e amarrotado mil vezes.

Quando os criados chegaram para levar o cadáver, a rapariga cega seguiu-os. Permitiu que os passos deles lhe servissem de guia mas, quando desceram, contou. Conhecia de cor as contagens de todas as escadas. Sob o templo havia um labirinto de caves e túneis onde até homens com dois olhos em bom estado se perdiam com frequência, mas a rapariga cega de­corara cada centímetro desse labirinto, e tinha a bengala para a ajudar a encontrar o caminho no caso de a memória lhe falhar.

Os cadáveres foram estendidos na cave. A rapariga cega pôs-se a tra­balhar no escuro, despindo os mortos de botas e roupa e outras posses, esvaziando-lhes as bolsas e contando as suas moedas. Distinguir uma mo­eda das outras apenas pelo tato fora uma das primeiras coisas que a criança abandonada lhe ensinara, depois de lhe tirarem os olhos. As moedas bra- vosianas eram velhas amigas; bastava-lhe passar as pontas dos dedos pelas faces para as reconhecer. Moedas de outras terras e cidades eram mais difí­ceis, especialmente as que vinham de longe. As honras volantenas eram as mais comuns, pequenas moedas não maiores que um dinheiro com uma coroa de um lado e um crânio do outro. As moedas lisenas eram ovais, e mostravam uma mulher nua. Outras moedas tinham navios nelas cunha­dos, ou elefantes, ou cabras. As moedas de Westeros mostravam a cabeça de um rei na cara e um dragão na coroa.

A velha não possuía bolsa, não tinha qualquer riqueza, salvo um anel num dedo magro. No homem bonito descobriu quatro dragões de ouro de Westeros. Estava a percorrer o mais desgastado com a ponta do polegar, tentando descobrir qual seria o rei que mostrava, quando ouviu a porta a abrir-se suavemente atrás de si.

—   Quem vem lá? — perguntou.

—   Ninguém. — A voz era profunda, ríspida, fria.

E em movimento. Deu um passo para o lado, agarrou a bengala, er­gueu-a com rapidez para proteger a cara. Madeira colidiu em madeira. A força do golpe quase lhe fez saltar o pau da mão. Aguentou, golpeou em resposta... e encontrou apenas ar vazio onde ele devia estar.

—   Aí não — disse a voz. — Serás cega?

Não respondeu. Falar só iria confundir os sons que ele pudesse estar a fazer. Sabia que o homem estaria em movimento. Esquerda ou direita? Saltou para a esquerda, brandiu o pau para a direita, não atingiu nada. Um golpe contundente vindo de trás apanhou-a na parte de trás das pernas.

—   Serás surda? — Girou sobre si própria, com o pau na mão esquer­da, rodopiando, falhando. Ouviu o som de um riso vindo da esquerda. Gol­peou para a direita.

Daquela vez acertou. O seu pau fez ricochete no dele. O impacto fez-lhe percorrer o braço por uma sacudidela.

—   iMuito bem — disse a voz.

A rapariga cega não sabia a quem a voz pertencia. A um dos acólitos, supunha. Não se lembrava de alguma vez ter ouvido a voz dele, mas quem garantiria que os servos do Deus das Muitas Caras não podiam alterar as vozes tão facilmente como alteravam as caras? Além dela, a Casa do Preto e Branco era o lar de dois criados, três acólitos, Umma, a cozinheira, e os dois sacerdotes a que chamava criança abandonada e homem amável. Outros iam e vinham, por vezes por caminhos secretos, mas aqueles eram os úni­cos que ali viviam. O seu adversário podia ser qualquer um.

A rapariga precipitou-se para o lado, com o pau a girar, ouviu um som atrás de si, rodopiou nessa direção, atingiu ar. E de repente, viu-se com o seu próprio pau entre as pernas, embaraçando-as quando tentava virar-se outra vez, esfblando-lhe a canela. Tropeçou e caiu sobre um joelho com tanta força que mordeu a língua.

Aí, parou. Imóvel como pedra. Onde está ele?

Atrás de si, ele riu-se. Deu-lhe uma pancada rápida numa orelha, de­pois atingiu-lhe os nós dos dedos quando ela tentou pôr-se em pé. Deixou cair o pau na pedra, com estrondo. Silvou de fúria.

—   Vá lá. Pega nele. Já te espanquei o suficiente por hoje.

—   Ninguém me espancou. — A rapariga pôs-se a gatinhar até que encontrou o pau, após o que se voltou a pôr em pé de um salto, magoada e suja. A cave estava imóvel e silenciosa. Ele desaparecera. Ou não? Podia es­tar mesmo a seu lado, e ela nunca saberia. Tenta ouvi-lo a respirar, disse a si própria. Mas não havia som algum. Esperou mais um momento, após o que pôs o pau de parte e reatou o trabalho. Se tivesse os olhos, podia espancá-lo até o deixar em sangue. Um dia o homem amável devolver-lhos-ia, e ela iria mostrar a todos como era.

O cadáver da velha arrefecera entretanto, o corpo do espadachim fi­cara rígido. A rapariga estava habituada àquilo. Na maioria dos dias passava mais tempo com os mortos do que com os vivos. Tinha saudades dos ami­gos que tivera quando era a Gata dos Canais; o Velho Brusco com as costas em mau estado, as filhas Talea e Brea, os saltimbancos do Navio, Merry e as rameiras do Porto Feliz, todos os outros patifes e escumalha das do­cas. Acima de tudo tinha saudades da própria Gata, ainda mais do que dos seus olhos. Gostara de ser a Gata, mais do que alguma vez gostara de ser a Salgada, a Pombinha, a Doninha ou o Arry. Matei a Gata quando matei aquele cantor. O homem amável dissera-lhe que lhe teriam tirado os olhos de qualquer forma, para a ajudar a aprender a usar os outros sentidos, mas só depois de se passar meio ano. Acólitos cegos eram comuns na Casa do Preto e do Branco, mas poucos eram tão novos como ela. A rapariga não se arrependia, porém. Dareon fora um desertor da Patrulha da Noite, me­recera morrer.