Naquela noite estava com sorte. A taberna encontrava-se quase vazia, e conseguiu reclamar para si um canto sossegado não muito longe do fogo. Assim que se instalou aí e cruzou as pernas algo se roçou na sua coxa.
— Outra vez tu? — disse a rapariga cega. Coçou-lhe a cabeça por trás de uma orelha, e o gato saltou-lhe para o colo e pôs-se a ronronar. Bravos estava cheia de gatos e não havia lugar que os tivesse em maior número do que a Casa de Pynto. O velho pirata acreditava que os animais traziam boa sorte e mantinham-lhe a taberna livre de bicharada. — Tu reconheces-me, não é verdade? — sussurrou. Os gatos não se deixavam enganar por verrugas falsas. Eles lembravam-se da Gata dos Canais.
Foi uma boa noite para a rapariga cega. Pynto estava alegre, e deu-lhe um copo de vinho aguado, um bocado de queijo fedorento e metade de um empadão de enguia.
— Pynto é um homem muito bom — anunciou, após o que se instalou para lhe falar da altura em que capturara o navio das especiarias, uma história que ela já ouvira uma dúzia de vezes.
A medida que as horas foram passando, a taberna foi-se enchendo. Pynto depressa ficou demasiado ocupado para lhe prestar a mínima atenção, mas vários dos fregueses regulares deixaram cair moedas na sua tigela de pedinte. Outras mesas foram ocupadas por estranhos; baleeiros ibbeneses que fediam a sangue e a gordura, um par de espadachins com óleo odorífero no cabelo, um gordo vindo de Lorath que se queixava de que o espaço entre as mesas era pequeno demais para a sua barriga. E mais tarde três lisenos, marinheiros da Bom Coração, uma galé devastada pelas tempestades que entrara com dificuldade cm Bravos na noite anterior e fora apreendida naquela manhã pelos guardas do Senhor do Mar.
Os lisenos ocuparam a mesa mais próxima do fogo, e conversaram calmamente por cima de taças de rum negro, mantendo a voz baixa para que ninguém os escutasse. Mas ela não era ninguém, e ouviu quase todas as palavras. E durante algum tempo pareceu-lhe que também os conseguia ver, através dos olhos tendidos do gato que ronronava ao seu colo. Um era velho e um era novo e um perdera uma orelha, mas todos os três tinham o cabelo louro muito claro e a pele lisa e clara de Lys, onde o sangue da antiga Cidade Livre ainda era forte.
Na manhã seguinte, quando o homem amável lhe perguntou que três coisas sabia e não soubera antes, estava pronta.
— Sei por que motivo o Senhor do Mar apreendeu o Bom Coração. Trazia escravos. Centenas de escravos, mulheres e crianças, amarrados uns aos outros no porão. — Bravos fora fundada por escravos fugidos, e o tráfico de escravos era ali proibido.
— Sei de onde os escravos vieram. Eram selvagens de Westeros, vindos de um sítio chamado Larduro. Um velho sítio arruinado, amaldiçoado. — A Velha Nan contara-lhe histórias sobre Larduro, em Winterfell, na época em que ainda era Arya Stark. — Depois da grande batalha onde o Rei-para-lá-da-Muralha foi morto, os selvagens fugiram, e uma bruxa da floresta disse que se fossem para Larduro viriam navios levá-los para um sítio quente. Mas não chegou navio nenhum, exceto aqueles dois piratas lisenos, o Bom Coração e o Elefante, que tinham sido empurrados para norte por uma tempestade. Largaram âncora ao largo de Larduro para fazer reparações e viram os selvagens, mas havia milhares e não tinham espaço para todos, portanto disseram que levariam só as mulheres e as crianças. Os selvagens não têm nada para comer, daí que os homens embarcaram as mulheres e as filhas, mas assim que os navios se viram no mar, os lisenos levaram-nas para baixo e amarraram-nas. Queriam vendê-las todas em Lys. Só que depois deram com outra tempestade e os navios separaram-se. O Bom Coração ficou tão danificado que o capitão não teve alternativa a acostar aqui, mas o Elefante pode ter conseguido voltar para Lys. Os lisenos na Casa de Pynto acham que vai regressar com mais navios. O preço dos escravos está a subir, dizem eles, e há mais milhares de mulheres e crianças em Larduro.
— É bom saber. São duas coisas. Há uma terceira?
— Sim. Sei que és tu quem me tem batido. — O seu pau saltou e acertou nos dedos dele, fazendo com que o pau do homem caísse ao chão com estrondo.
O sacerdote estremeceu e recolheu a mão.
— E como pode uma rapariga cega saber isso?
Vi-te.
— Dei-te três coisas. Não tenho de te dar quatro. — Talvez no dia seguinte lhe falasse do gato que a seguira para casa na noite anterior desde a Casa de Pynto, o gato que estava escondido nas vigas do telhado a olhá-los. Ou talvez não. Se ele podia ter segredos, ela também os podia ter.
Nessa noite, Umma serviu caranguejos na crosta de sal para o jantar. Quando a taça lhe foi apresentada, a rapariga cega torceu o nariz e bebeu-a em três longos tragos. Depois arquejou e deixou cair a taça. Tinha a língua em fogo, e quando emborcou uma taça de vinho as chamas espalha-ram-se-lhe pela garganta abaixo e pelo nariz acima.
— O vinho não vai ajudar, e a água só espevitará as chamas — disse-lhe a criança abandonada. — Come isto. — Uma côdea de pão foi empurrada contra a sua mão. A rapariga encheu a boca com ela, mastigou, engoliu. Ajudou. Um segundo bocado ajudou mais.
E ao chegar a manhã, quando a loba noturna a abandonou e abriu os olhos, viu que uma vela de sebo estava a arder onde nenhuma vela estivera na noite anterior, com a chama insegura a oscilar de um lado para o outro como uma rameira no Porto Feliz. Nunca vira coisa tão bela.
UM FANTASMA EM WINTERFELL
O morto foi encontrado na base da muralha interior, com o pescoço partido e só a perna esquerda à mostra, fora da neve que o enterrara durante a noite.
Se as cadelas de Ramsay não o tivessem desenterrado, ele podia ter permanecido enterrado até à primavera. Quando o Ben Ossos o tirou da neve, a Jeyne Cinzenta já comera tanta da cara do morto que se passou meio dia até saberem com certeza quem ele fora: um homem-de-armas de quarenta e quatro anos que marchara para norte com Roger Ryswell.
— Um bêbado — declarou Ryswell. — A mijar da muralha, aposto. Escorregou e caiu. — Ninguém discordou. Mas Theon Greyjoy deu por si a interrogar-se sobre o motivo por que um homem subiria noite cerrada os degraus que levavam às ameias, tornados escorregadios pela neve, só para uma mijinha.
Quando a guarnição quebrou o jejum nessa manhã com pão duro frito em gordura de bacon (os senhores e cavaleiros comeram o bacon), as conversas ao longo dos bancos versavam sobre pouco além do cadáver.
— Stannis tem amigos dentro do castelo — ouviu Theon um sargento resmungar. Era um velho homem dos Tallhart, com três árvores cosidas no sobretudo esfarrapado. O turno tinha acabado de mudar. Homens chegavam vindos do frio, batendo os pés para fazer cair a neve das botas e das bragas enquanto a refeição do meio do dia era servida; morcela, alho-porro e pão preto ainda quente do forno.
— Stannis? — riu um dos cavaleiros de Roose Ryswell. — Por esta altura já Stannis morreu enterrado em neve. Ou então fugiu de volta para a Muralha com o rabo congelado entre as pernas.