— Podia estar acampado com cem mil homens a metro e meio das nossas muralhas — disse um arqueiro que usava cores dos Cerwyn. — Nunca veríamos nem um através desta tempestade.
Sem fim, sem cessar, sem misericórdia, a neve caíra de dia e de noite. Montes acumulados pelo vento subiam as muralhas e enchiam as ameias, mantas brancas cobriam todos os telhados, tendas descaíam sob o peso. Havia cordas esticadas entre os edifícios para evitar que os homens se perdessem ao atravessar os pátios. Sentinelas aglomeravam-se nos torreões de guarda para aquecer mãos meio congeladas por cima de braseiros incandescentes, abandonando os adarves às sentinelas de neve que os escudeiros tinham feito, as quais se tornavam maiores e mais estranhas todas as noites, à medida que o vento e o tempo sobre elas trabalhavam. Irregulares barbas de gelo cresciam ao longo das lanças que os seus punhos de neve seguravam. Até um homem da categoria de Hosteen Frey, que fora ouvido a rosnar que não temia um pouco de neve, perdeu uma orelha queimada pelo frio.
Eram os cavalos nos pátios que mais sofriam. As mantas que eram postas por cima deles para os manter quentes ficavam completamente ensopadas e congelavam se não fossem mudadas com regularidade. Quando eram acesas fogueiras para manter o frio afastado, faziam mais mal que bem. Os cavalos de guerra temiam as chamas e lutavam para se afastarem delas, ferindo-se, e aos outros cavalos, quando puxavam pelas amarras. Só os cavalos que estavam nos estábulos se mantinham em segurança e quentes, mas os estábulos já estavam excessivamente cheios.
— Os deuses viraram-se contra nós — ouviu-se o Lorde Locke dizer no Grande Salão. — Isto é a fúria deles. Um vento tão frio como o próprio inferno, e nevões que nunca terminam. Estamos amaldiçoados.
— Stannis está amaldiçoado — insistiu um homem do Forte do Pavor. — É ele que está lá fora na tempestade.
— O Lorde Stannis pode estar mais quente do que julgamos — contrapôs um pouco inteligente cavaleiro livre. — A feiticeira dele é capaz de invocar o fogo. Pode ser que o deus vermelho dela consiga derreter esta neve.
Isto foi insensato, compreendeu Theon de imediato. O homem falara alto de mais e ao alcance do ouvido do Picha Amarela, do Alyn Azedo e do Ben Ossos. Quando a história chegou ao Lorde Ramsay, ele mandou os Rapazes do Bastardo capturar o homem e arrastá-lo para a neve.
— Já que pareces gostar tanto de Stannis, mandamos-te para junto dele — disse. O Damon Dança-Para-Mim deu ao cavaleiro livre umas quantas chicotadas com o seu longo chicote oleado. Depois, enquanto o Esfolador e o Picha Amarela faziam apostas sobre quão depressa o sangue congelaria, Ramsay mandou arrastar o homem até ao Portão das Ameias.
Os grandes portões principais de YVinterfell estavam fechados e trancados, e tão afogados em gelo e neve que a porta levadiça teria de ser libertada à martelada antes de poder ser erguida. Mais ou menos o mesmo se passava com o Portão do Caçador, se bem que pelo menos aí o gelo não fosse um problema, visto que o portão fora usado recentemente. O Portão da Estrada de Rei não fora, e gelo tornara as correntes da ponte levadiça duras como rocha. Restava o Portão das Ameias, uma pequena poterna em arco na muralha interior. Só meia porta, na realidade, possuía uma ponte levadiça que ultrapassava o fosso congelado, mas não tinha porta correspondente na muralha exterior, dando acesso às ameias exteriores mas não ao mundo que se estendia atrás delas.
O cavaleiro livre foi levado a sangrar pela ponte e pelas escadas acima, ainda a protestar. Depois, o Esfolador e o Alyn Azedo agarraram-lhe pelos braços e pelas pernas e atiraram-no da muralha para o chão, vinte e cinco metros lá em baixo. Os montes de neve tinham subido tanto que engoliram o homem por completo... mas arqueiros nas ameias afirmaram tê-lo visto algum tempo mais tarde, a arrastar uma perna partida pela neve fora. Um pôs-lhe penas na garupa enquanto o homem se afastava.
— Dentro de uma hora está morto — prometeu o Lorde Ramsay.
— Ou então está a mamar a picha do Lorde Stannis antes de o Sol se pôr — atirou de volta o Terror-das-Rameiras Umber.
— É melhor que tenha cuidado para ela não se partir — riu-se Ri- ckard Ryswell. — Seja qual for o homem que estiver lá fora com este tempo, tem a picha gelada como pedra.
— O Lorde Stannis está perdido na tempestade — disse a Senhora Dustin. — Está a léguas de distância, morto ou moribundo. Deixai o inverno fazer o seu pior. Mais alguns dias e os nevões enterram-no a ele e ao seu exército.
E a nós também, pensou Theon, espantando-se com a loucura da mulher. A Senhora Barbrey era do norte, e devia ter mais juízo. Os deuses antigos podiam estar à escuta.
O jantar foi papas de ervilha e pão de véspera, e também isso levou a resmungos entre os plebeus; acima do sal, os senhores e cavaleiros foram vistos a comer presunto.
Theon estava debruçado por cima de uma tigela de madeira, acabando com o resto da sua dose de papas de ervilha, quando um ligeiro toque no ombro o fez largar a colher.
— Nunca me toques — disse, torcendo-se para baixo a fim de apanhar do chão o utensílio caído antes que uma das raparigas de Ramsay tivesse tempo de se apoderar dele. — Nunca me toques.
Ela sentou-se ao lado dele, perto demais; outra das lavadeiras de Abel. Aquela era jovem, com quinze, talvez dezasseis anos, e um hirsuto cabelo louro a precisar de uma boa lavadela e um par de lábios cheios a precisar de um bom beijo.
— Há raparigas que gostam de tocar — disse, com um pequeno meio sorriso. — Se aprouver ao senhor, chamo-me Holly.
Holly, a rameira, pensou, mas ela era bastante bonita. Em tempos podia ter-se rido, podia tê-la puxado para o seu colo, mas esses dias tinham terminado.
— Que queres tu?
— Ver essas criptas. Onde ficam, senhor? Não me quereis mostrar? — Holly brincou com uma madeixa do cabelo, enrolando-a em volta do mindinho. — Dizem que são profundas e escuras. Um bom lugar para tocar. Com todos os reis mortos a ver.
— Foi o Abel que te mandou vir ter comigo?
— Se calhar foi. Se calhar fui cu que me mandei a mim própria. Mas se é o Abel que quereis, posso trazê-lo. Ele canta ao senhor uma doce canção.
A cada palavra que ela dizia mais Theon se persuadia de que aquilo era tudo um estratagema qualquer. Mas de quem, e para que fim? Que podia Abel querer dele? O homem era só um cantor, um proxeneta com um alaúde e um sorriso falso. Quer saber como foi que eu tomei o castelo, mas não para fazer uma canção. A resposta ocorreu-lhe. Quer saber como foi que entrámos para poder sair. O Lorde Bolton tinha Winterfell tão bem fechado como os cueiros de um bebé. Ninguém podia entrar ou sair sem a sua licença. Ele quer fugir, ele e as suas lavadeiras. Theon não podia censurá-lo, mas mesmo assim disse:
— Não quero nada de Abel, nem de ti, nem de nenhuma das tuas irmãs. Deixai-me só em paz.
Lá fora a neve dançava, rodopiava. Theon foi até à muralha às apalpadelas, após o que a seguiu até ao Portão das Ameias. Podia ter confundido os guardas com um par dos bonecos de neve do Walder Pequeno se não tivesse visto as nuvenzinhas brancas da sua respiração.
— Quero passear pelas muralhas — disse-lhes, com a respiração a congelar no ar.
— está um frio dos diabos lá em cima — avisou um.
— está um frio dos diabos cá em baixo — disse o outro — mas faz o que quiseres, vira-mantos. — Fez a Theon um gesto para passar.
Os degraus estavam cheios de neve e escorregadios, traiçoeiros no escuro. Quando chegou ao adarve não demorou muito a descobrir o lugar de onde tinham atirado o cavaleiro livre. Afastou a muralha de neve fresca que enchia a ameia e debruçou-se entre os merlões. Podia saltar, pensou. Ele sobreviveu, porque não sobreviveria eu? Podia saltar, e... E o quê? Partia uma perna e morria debaixo da neve? Afastava-me a rastejar para morrer gelado?