— Trabalho noturno não é trabalho de cavaleiro — disse a Senhora Dustin. — E o Lorde Wyman não foi o único homem a perder familiares no vosso Casamento Vermelho, Frey. Imaginais que o Terror-das-Rameiras gosta mais de vós? Se não tivésseis o Grande-Jon prisioneiro, arrancar-vos-ia as entranhas e obrigar-vos-ia a comê-las, como a Senhora Hornwood comeu os dedos. Os Flint, os Cerwyn, os Tallhart, os Slate... todos tinham homens com o Jovem Lobo.
— A Casa Ryswell também — disse Roger Ryswell.
— Até havia Dustins de Vila Acidentada. — A Senhora Dustin separou os lábios num sorriso fino, feroz. — O norte tem memória, Frey.
A boca de Aenys Frey estremeceu de indignação.
— O Stark desonrou-nos. É disso que é melhor que vós, os nortenhos, se lembrem.
Roose Bolton esfregou os lábios gretados.
— Estas discussões não servem para nada. — Sacudiu os dedos na direção de Theon. — Sois livre para vos irdes embora. Tomai cuidado com os sítios por onde vagueais. Caso contrário pode ser a vós que encontramos amanhã, a sorrir um sorriso vermelho.
— É como dizeis, senhor. — Theon voltou a calçar as luvas nas mãos mutiladas e retirou-se, coxeando sobre os pés mutilados.
A hora do lobo foi encontrá-lo ainda acordado, envolto em camadas de lã pesada e peles sebentas, percorrendo mais uma vez o circuito das muralhas interiores, na esperança de se exaurir o suficiente para dormir. Tinha as pernas cobertas de neve até aos joelhos, a cabeça e os ombros amortalhados de branco. Naquela parte da muralha o vento soprava-lhe para a cara, e neve a derreter escorria-lhe pelas bochechas como lágrimas geladas.
Foi então que ouviu o corno.
Um longo e grave gemido, parecia pairar sobre as ameias, demorando-se no ar negro, infiltrando-se profundamente nos ossos de todos os homens que o ouvissem. Ao longo de todas as muralhas do castelo, sentinelas viraram-se para o som, apertando as mãos em volta dos cabos das suas lanças. Nos salões e torres arruinados de Winterfell, senhores mandaram calar outros senhores, cavalos relincharam e homens adormecidos agitaram-se nos cantos escuros. Assim que o som do corno de guerra morreu, um tambor começou a tocar: BUM fim BUM fim BUM fim. E um nome passou dos lábios de um homem para o seguinte, escrito em pequenas nuvenzinhas brancas. Stannis, sussurraram, Stannis está aqui, Stannis chegou, Stannis, Stannis, Stannis.
Theon estremeceu. Baratheon 011 Bolton, para ele não fazia diferença. Stannis fizera causa comum com Jon Snow na Muralha, e Jon cortar-lhe-ia a cabeça num piscar de olhos. Arrancado às garras de um bastardo para morrer às mãos de outro, que anedota. Theon teria rido alto se se lembrasse de como se fazia.
O tambor parecia vir da mata de lobos para lá do Portão do Caçador. Estão mesmo junto das muralhas. Theon abriu caminho ao longo do adarve, um homem mais entre uma vintena que fazia o mesmo. Mas, quando chegaram às torres que flanqueavam o portão propriamente dito, nada havia para ver para lá do véu de brancura.
— Será que eles pretendem tentar derrubar-nos as muralhas ao sopro? — gracejou um Flint quando o corno de guerra voltou a soar. — Se calhar acha que encontrou o Corno de Joramun.
— Será Stannis suficientemente tolo para assaltar o castelo? — perguntou uma sentinela.
— Ele não é Robert — declarou um homem de Vila Acidentada. — Vai esperar, hás de ver se não. Vai tentar derrotar-nos pela fome.
— Antes disso congela os tomates — disse outra sentinela.
— Devíamos levar o combate até ele — declarou um Frey.
Faz isso, pensou Theon. Cavalga para a neve e morre. Deixa Winterfell comigo e com os fantasmas. Parecia-lhe que Roose Bolton acolheria com satisfação um tal combate. Ele precisa de um fim para isto. O castelo estava demasiado cheio para aguentar um longo cerco, e demasiados dos senhores que lá se encontravam eram de dúbia lealdade. O gordo Wyman Manderly, o Terror-das-Rameiras Umber, os homens da Casa Hornwood e da casa Tallhart, os Locke, os Flint e os Ryswell, todos eram nortenhos, ajuramentados à Casa Stark há incontáveis gerações. Era a rapariga que os segurava ali, sangue do Lorde Eddard, mas a rapariga era só um estratagema de saltimbanco, um cordeiro em pele de lobo gigante. Por isso, porque não fazer avançar os nortenhos para batalhar com Stannis antes que a farsa fosse desvendada? Um massacre na neve. E cada homem que cair é um inimigo a menos para o Forte do Pavor.
Theon perguntou a si próprio se lhe permitiriam combater. Assim, pelo menos, podia morrer uma morte de homem, de espada na mão. Essa era uma dádiva que Ramsay nunca lhe daria, mas o Lorde Roose talvez desse. Se lhe suplicar. Fiz tudo o que me pediu, desempenhei o meu papel, entreguei a rapariga.
A morte era o melhor salvamento que podia esperar.
No bosque sagrado a neve ainda se dissolvia quando tocava na terra. Erguia-se vapor das lagoas quentes, aromatizado com o cheiro do musgo, da lama e da putrefação. Um nevoeiro tépido pairava no ar, transformando as árvores em sentinelas, altos soldados envoltos em mantos de sombras. Durante as horas diurnas, o bosque brumoso estava frequentemente cheio de nortenhos que vinham rezar aos deuses antigos, mas àquela hora Theon Greyjoy descobriu que o tinha todo para si.
E no coração do bosque, o represeiro aguardava com os seus sabedores olhos vermelhos. Theon parou à beira da lagoa e baixou a cabeça perante a rubra cara esculpida da árvore. Mesmo ali conseguia ouvir os tambores, bum FIM bum FIM bum FIM bum FIM. Como trovões distantes, o som parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo.
A noite estava sem vento, a neve descia a direito de um frio céu negro, mas as folhas na árvore coração restolhavam mesmo assim.
— Theon — pareciam murmurar — Theon.
Os deuses antigos, pensou. Conhecem-me. Sabem o meu nome. Eu era Theon da Casa Greyjoy. Era protegido de Eddard Stark, amigo e irmão dos seus filhos.
— Por favor — Caiu sobre os joelhos. — Uma espada, é tudo o que peço. Deixai-me morrer como Theon, não como Cheirete. — Lágrimas escorreram-lhe pela cara, impossivelmente quentes. — Eu era nascido no ferro. Um filho... um filho de Pyke, das ilhas.
Uma folha pairou vinda de cima, roçou-lhe na testa e aterrou na lagoa. Flutuou na água, vermelha, com cinco dedos, como uma mão ensanguentada.
— ... Bran — murmurou a árvore.
Eles sabem. Os deuses sabem. Viram o que eu fiz. E por um estranho momento pareceu-lhe ser a cara de Bran que estava esculpida no pálido tronco do represeiro, a fitá-lo com olhos vermelhos e sábios e tristes. O fantasma de Bran, pensou, mas isso era uma loucura. Porque haveria Bran de o assombrar? Ele gostara do rapaz, nunca lhe fizera qualquer mal. Não foi Bran que matámos. Não foi Rickon. Eles eram só filhos do moleiro, do moinho junto a Água de Bolotas.
— Eu tinha de cortar duas cabeças, senão teriam troçado de mim... ter-se-iam rido de mim... eles...
Uma voz disse:
— Com quem estás tu a falar?
Theon rodopiou sobre si próprio, aterrorizado com a possibilidade de Ramsay o ter encontrado, mas eram só as lavadeiras; Holly, Rowan e uma cujo nome não conhecia.