Os olhos de Melisandre brilharam tanto como o rubi na sua garganta.
— Então vinde até mim, e sede como um. — Enquanto chamava, uma muralha de chamas rugiu para cima, lambendo os flocos de neve com quentes línguas cor-de-laranja. Alys Karstark pegou na mão do seu Magnar.
Lado a lado saltaram a vala.
— Dois penetraram nas chamas. — Uma rajada de vento ergueu as saias escarlates da mulher vermelha até ela voltar a empurrá-las para baixo.
— Um emerge. — O seu cabelo acobreado dançou-lhe em volta da cabeça.
— O que o fogo junta ninguém pode separar.
— O que o fogo junta ninguém pode separar — soou o eco, vindo dos homens da rainha, dos Thenn, e mesmo de alguns dos irmãos negros.
Exceto reis e tios, pensou Jon Snow.
Cregan Karstark aparecera um dia depois da sobrinha. Com ele tinham vindo quatro homens-de-armas a cavalo, um caçador e uma matilha de cães, a perseguir a Senhora Alys como se ela fosse uma corça. Jon Snow foi ao seu encontro na estrada do rei, meia milha a sul de Vila Toupeira, antes que aparecessem em Castelo Negro e reclamassem direito de hóspede ou exigissem parlamentar. Um dos homens Karstark disparara um dardo de besta contra Ty e morrera por isso. O que deixara quatro e o próprio Cregan.
Felizmente, tinham uma dúzia de celas de gelo. Espaço para todos.
Como tantas outras coisas, a heráldica terminava na Muralha. Os Thenn não possuíam armas de família como era costume entre os nobres dos Sete Reinos, portanto Jon dissera aos intendentes para improvisarem. Achava que se tinham saído bem. O manto de noiva que Sigorn prendeu em torno dos ombros da Senhora Alys mostrava um disco de bronze num fundo de lã branca, rodeado por chamas feitas com farrapos de seda carmesim. O eco do esplendor Karstark estava lá para aqueles que quisessem ver, mas diferenciado para tornar as armas apropriadas para a Casa Thenn.
O Magnar praticamente arrancou o manto de donzela dos ombros de Alys, mas quando prendeu o manto de noiva em volta dela foi quase terno. Quando se baixou para a beijar na cara, os seus hálitos misturaram-se. As chamas voltaram a rugir. Os homens da rainha começaram a cantar uma canção de elogio.
— Está feito? — ouviu Jon o Cetim murmurar.
— Feito e acabado — resmungou Mully — e ainda bem. Eles estão casados e eu estou meio congelado. — Estava agasalhado com os seus melhores negros, lãs tão novas que mal tinham tido oportunidade de desbotar, mas o vento pusera-lhe as bochechas tão vermelhas como o cabelo. — O Hobb temperou algum vinho com canela e cravinho. Isso há de nos aquecer um bocado.
— Que é cravinho? — perguntou o Owen Idiota.
A neve passara a cair mais densa e a fogueira na vala estava a apagar-se. A multidão começou a quebrar-se e a sair do pátio, tanto homens da rainha, como homens do rei ou do povo livre, todos ansiosos por sair do vento e do frio.
— O senhor vai banquetear-se conosco? — perguntou Mully a Jon Snow.
— Daqui a pouco. — Sigorn podia encarar como descortesia que ele não aparecesse. E este casamento é obra minha, afinal de contas. — Mas tenho outros assuntos a tratar primeiro.
Jon aproximou-se da Rainha Selyse, com Fantasma a seu lado. As botas rangeram em montes de neve antiga. Estava a tornar-se cada vez mais demorado limpar à pazada os caminhos que iam de uns edifícios aos outros; os homens recorriam cada vez mais às passagens subterrâneas a que chamavam caminhos de verme.
— ... um rito tão belo — estava a rainha a dizer. — Consegui sentir o olhar fogoso do senhor posto em nós. Oh, não podeis saber quantas vezes supliquei a Stannis para nos voltarmos a casar, uma união verdadeira de corpo e de espírito abençoada pelo Senhor da Luz. Eu sei que podia dar mais filhos a Sua Graça se estivéssemos unidos em fogo.
Para lhe dares mais filhos precisavas primeiro de o meter na tua cama. Mesmo na Muralha, era sabido por todos que Stannis Baratheon evitava a mulher há anos. Não era difícil imaginar como Sua Graça teria respondido à ideia de um segundo casamento no meio daquela guerra.
Jon fez uma vénia.
— Se aprouver a Vossa Graça, o banquete aguarda.
A rainha deitou um relance desconfiado ao Fantasma, após o que ergueu a cabeça para Jon.
— Com certeza. A Senhora Melisandre conhece o caminho.
A sacerdotisa vermelha interveio.
— Eu tenho de cuidar dos meus fogos, Vossa Graça. Talvez Rhllor me conceda um vislumbre de Sua Graça. Um vislumbre de alguma grande vitória, porventura.
— Oh. — A Rainha Selyse pareceu magoada. — Com certeza. Rezemos por uma visão do nosso senhor...
— Cetim, acompanha Sua Graça até ao seu lugar — disse Jon.
Sor Malegorn avançou.
— Eu acompanharei Sua Graça até ao banquete. Não precisaremos do vosso... intendente. — O modo como o homem arrancou a última palavra disse a Jon que pensara dizer outra coisa. Rapaz? Animal de estimação? Prostituto?
Jon voltou a fazer uma vénia.
— Como quiserdes. Juntar-me-ei a vós em breve.
Sor Malegorn ofereceu o braço e a Rainha Selyse deu-lhe o seu com rigidez. A sua outra mão pousou no ombro da filha. Os patinhos reais fizeram fila atrás deles ao atravessarem o pátio, marchando à música das campainhas no chapéu do bobo.
— Debaixo do mar os tritões banqueteiam-se com sopa de estrela-do-mar, e todos os criados são caranguejos — proclamou o Cara-Malhada enquanto se afastavam. — Eu sei, eu sei, hei, hei, hei.
A cara de Melisandre escureceu.
— Aquela criatura é perigosa. Foram muitas as vezes em que o vislumbrei nas minhas chamas. Às vezes há crânios à volta dele, e os lábios estão vermelhos de sangue.
Espanta-me que não tenhas mandado queimar o pobre homem. Bastaria uma palavra ao ouvido da rainha, e o Cara-Malhada iria alimentar as fogueiras.
— Vedes bobos no vosso fogo, mas nenhum sinal de Stannis?
— Quando procuro por ele, só o que vejo é neve.
A mesma resposta inútil. Clydas enviara um corvo para Bosque Profundo a fim de avisar o rei da traição de Arnolf Karstark, mas Jon não sabia se a ave teria chegado a Sua Graça a tempo. O banqueiro bravosiano também andava à procura de Stannis, acompanhado pelos guias que Jon lhe dera, mas entre a guerra e o estado do tempo seria de admirar que o encontrasse.
— Saberíeis se o rei estivesse morto? — perguntou Jon à sacerdotisa vermelha.
— Não está morto. Stannis é o escolhido do Senhor, destinado a liderar a luta contra a escuridão. Eu vi-o nas chamas, li-o numa antiga profecia. Quando a estrela vermelha sangra e a escuridão se aprofunda, Azor Ahai renascerá por entre fumo e sal para despertar dragões da pedra. Pedra do Dragão é o lugar de fumo e sal.
Jon já antes ouvira tudo aquilo.
— Stannis Baratheon era Senhor de Pedra do Dragão, mas não nasceu lá. Nasceu em Ponta Tempestade, como os irmãos. — Franziu o sobrolho. — E Mance? Também está perdido? O que é que os vossos fogos mostram?
— O mesmo, temo bem. Só neve.
Neve. Jon sabia que nevava fortemente a sul. Dizia-se que a estrada do rei estava intransitável a apenas dois dias de viagem dali. Melisandre também sabe disso. E, a leste, uma violenta tempestade assolava a Baía das Focas. Segundo os últimos relatórios, a frota improvisada que tinham reunido para salvar o povo livre de Larduro ainda se mantinha aninhada em Atalaialeste-do-Mar, confinada ao porto por mares alterosos.
— Estais a ver cinzas a dançar no vento.
— Estou a ver crânios. E a vós. Vejo a vossa cara de todas as vezes que olho para as chamas. O perigo de que vos avisei está agora a ficar muito próximo.