— O Lorde Stannis está lá fora e, a ajuizar pelo som, não está longe. Basta-nos chegar até ele. — Os dedos de Abel dançavam nas cordas do seu alaúde. A barba do cantor era castanha, embora a maior parte do seu cabelo comprido se tivesse tornado grisalha. — Se o Bastardo vier atrás de nós, talvez viva o suficiente para se arrepender.
Pensa isso, pensou Theon. Acredita nisso. Diz a ti próprio que é verdade.
— Ramsay usará as tuas mulheres como presas — disse ao cantor. — Irá persegui-las, violá-las e dar os seus cadáveres a comer aos cães. Se a perseguição for boa, talvez batize a ninhada seguinte de cadelas em sua honra. A ti, esfolará. Ele e o Esfolador e o Damon Dança-Para-Mim, farão disso um jogo. Acabarás a suplicar-lhes que te matem. — Agarrou no braço do cantor com uma mão estropiada. — Juraste que não me voltarias a deixar cair nas mãos dele. Deste-me a tua palavra. — Precisava de voltar a ouvi-la.
— A palavra de Abel — disse a Esquila. — Forte como carvalho. — O próprio Abel limitou-se a encolher os ombros.
— Aconteça o que acontecer, meu príncipe.
Lá em cima, no estrado, Ramsay estava a discutir com o pai. Estavam longe demais para Theon distinguir alguma das palavras, mas o medo na cara redonda e cor-de-rosa da Walda Gorda era plenamente eloquente. Conseguiu ouvir Wyman Manderly a gritar por mais salsichas, e a gargalhada com que Roger Ryswell respondeu a um gracejo do maneta Harwood Stout.
Theon perguntou a si próprio se alguma vez veria os salões aquáticos do Deus Afogado, ou se o seu fantasma permaneceria ali em Winterfell. Morto é morto. Antes morto que Cheirete. Se o plano de Abel corresse mal, Ramsay tornaria as suas mortes demoradas e duras. Desta vez esfolar-me-á da cabeça aos pés, e nenhuma quantidade de súplica porá fim ao sofrimento. Nenhuma dor que Theon tivesse sentido se aproximava da agonia que o Esfolador era capaz de despertar com uma pequena lâmina de esfolar. Abel aprenderia bem depressa essa lição. E por quê? Jeyne, o nome dela é Jeyne, e os olhos são da cor errada. Uma saltimbanca a desempenhar um papel. O Lorde Bolton sabe, e Ramsay também, mas os outros estão cegos, mesmo este maldito bardo com os seus sorrisos matreiros. O alvo da piada és tu, Abel, tu e as tuas rameiras assassinas. Morrerás pela rapariga errada.
Estivera a milímetros de lhes contar a verdade quando Rowan o levara a Abel nas ruínas da Torre Queimada, mas no último instante dominara a língua. O cantor parecia decidido a fugir com a filha de Eddard Stark. Se soubesse que a noiva do Lorde Ramsay não passava da cria de um intendente, bem...
As portas do Grande Salão abriram-se com estrondo.
Um vento frio entrou aos turbilhões, e uma nuvem de cristais de gelo cintilou, branca azulada, no ar. Através dessa nuvem entrou Hosteen Frey, a passos largos, coberto de neve até à cintura, com um corpo nos braços. Ao longo dos bancos, os homens pousaram os copos e as colheres para se virarem e olharem de boca aberta o espetáculo macabro. O salão silenciou-se.
Outro assassínio.
Neve foi deslizando do manto de Sor Hosteen enquanto ele caminhava na direção da mesa elevada, fazendo ressoar os passos no chão. Uma dúzia de cavaleiros e homens-de-armas Frey entrou atrás dele. Um era um rapaz que Theon conhecia; o Walder Grande, o pequeno, com cara de raposa e escanzelado como um pau. Trazia o peito, os braços e o manto salpicados de sangue.
O odor do sangue pôs os cavalos a berrar. Cães saíram de baixo das mesas, a farejar. Homens levantaram-se dos bancos. O corpo nos braços de Sor Hosteen cintilou à luz dos archotes, couraçado de geada rosada. O frio, lá fora, congelara-lhe o sangue.
— O filho do meu irmão Merrett. — Hosteen Frey baixou o corpo para o chão em frente do estrado. — Massacrado como um cão e enfiado debaixo de um monte de neve. Um rapaz.
O Walder Pequeno, pensou Theon. O grande. Deitou uma olhadela a Rowan. Elas são seis, recordou. Qualquer uma pode ter feito isto. Mas a lavadeira sentiu o seu olhar.
— Isto não foi obra nossa — disse.
— Cala-te — avisou Abel.
O Lorde Ramsay desceu do estrado até junto do rapaz morto. O seu pai ergueu-se mais devagar, de olhos pálidos, de rosto imóvel, solene.
— Isto foi uma maldade. — Por uma vez, a voz de Roose Bolton soou suficientemente sonora para se projetar. — Onde foi encontrado o rapaz?
— Debaixo daquela torre arruinada, senhor — respondeu o Walder Grande. — A que tem as velhas gárgulas. — As luvas do rapaz estavam cobertas com o sangue do primo. — Eu disse-lhe para não sair sozinho, mas ele disse que tinha de ir ao encontro de um homem que lhe devia prata.
— Que homem? — quis saber Ramsay. — Diz-me o nome dele. Aponta-mo, que te faço um manto com a pele dele.
— Ele não chegou a dizer, senhor. Só que ganhou o dinheiro aos dados. — O rapaz Frey hesitou. — Foram uns homens de Porto Branco que lhe ensinaram a jogar aos dados. Ele não soube dizer quem, mas foram eles.
— Senhor — trovejou Hosteen Frey. — Conhecemos o homem que fez isto. O homem que matou este rapaz e todos os outros. Não pela sua própria mão, não. É demasiado gordo e cobarde para cometer os seus próprios assassínios. Mas pelas palavras. — Virou-se para Wyman Manderly. — Negai-lo?
O Senhor de Porto Branco cortou uma salsicha em duas com uma dentada.
— Confesso... — Limpou a gordura dos lábios com a manga. — ... confesso que pouco sei sobre este pobre rapaz. Era escudeiro do Lorde Ramsay, não era? Que idade tinha o moço?
— Fez nove no último dia do seu nome.
— Tão novo — disse Wyman Manderly. — Se bem que isto talvez tenha sido uma bênção. Se tivesse sobrevivido, teria crescido para se tornar um Frey.
Sor Hosteen deu um pontapé no tampo da mesa, arrancando-o de cima dos suportes e atirando-o contra a barriga inchada do Lorde Wyman. Voaram taças e pratos, salsichas espalharam-se por todo o lado, e uma dúzia de homens Manderly pôs-se de pé a praguejar. Alguns agarraram em facas, bandejas, jarros, em qualquer coisa que pudesse servir-lhes de arma.
Sor Hosteen Frey arrancou a espada da bainha e saltou sobre Wyman Manderly. O Senhor de Porto Branco tentou afastar-se, mas o tampo da mesa prendia-o contra a cadeira. A lâmina cortou três dos seus quatro queixos num borrifo de sangue vermelho vivo. A Senhora Walda soltou um guincho e agarrou-se ao braço do senhor seu esposo.
— Parai — gritou Roose Bolton. — Parai com esta loucura. — Os seus homens correram em frente, enquanto os Manderly saltavam sobre os bancos para cair sobre os Frey. Um atirou-se a Sor Hosteen com um punhal, mas o grande cavaleiro rodopiou e cortou-lhe o braço pelo ombro. O Lorde Wyman conseguiu pôr-se em pé, mas apenas para estatelar-se. O velho Lorde Locke gritou por um meistre enquanto Manderly tombava no chão como uma morsa atingida por uma moca, numa crescente poça de sangue. A volta dele, cães lutavam por salsichas.
Foram necessárias duas vintenas de lanceiros do Forte do Pavor para separar os combatentes e pôr fim à carnificina. Por essa altura, já seis homens de Porto Branco e dois Freys jaziam mortos no chão. Mais uma dúzia estava ferida e um dos Rapazes do Bastardo, Luton, morria ruidosamente, gritando pela mãe enquanto tentava enfiar uma mancheia de entranhas viscosas num grande corte que tinha na barriga. O Lorde Ramsay silenciou-o, arrancando uma lança a um dos homens do Pernas-dAço e enfiando-a no peito de Luton. Mesmo depois disso as vigas continuaram a ressoar com gritos, preces e pragas, com os guinchos de cavalos aterrorizados e os rosni- dos das cadelas de Ramsay. O Walton Pernas-dAço teve de bater uma dúzia de vezes com a haste da lança no chão até o salão se silenciar o suficiente para que Roose Bolton fosse ouvido.