— Trago água quente para a Senhora Arya — disse-lhes Theon.
— Experimenta também tu tomar banho, Cheirete — disse o Alyn Azedo. — Cheiras a mijo de cavalo. — O Grunhido grunhiu em concórdia. Ou talvez pretendesse que aquele ruído fosse uma gargalhada. Mas Alyn destrancou a porta do quarto, e Theon fez sinal às mulheres para entrarem.
Dentro do quarto não existira alvorada. Sombras cobriam tudo. Um último lenho crepitava debilmente entre as brasas moribundas na lareira, e uma vela tremeluzia na mesa ao lado de uma cama desfeita e vazia. A rapariga desapareceu, pensou Theon. Atirou-se da janela em desespero. Mas as janelas, ali, estavam cerradas contra a tempestade, e isoladas por crostas de neve soprada pelo vento e por gelo.
— Onde é que ela está? — perguntou Holly. As irmãs despejaram os baldes na grande banheira redonda de madeira. Frenya fechou a porta do aposento e encostou-lhe as costas. — Onde é que ela está? — voltou a dizer Holly. Lá fora soou um corno. Uma trombeta. Os Frey, reunindo-se para a batalha. Theon sentiu comichão nos dedos que lhe faltavam.
Então viu-a. Estava aninhada no canto mais escuro do quarto, no chão, enrolada numa bola sob uma pilha de peles de lobo. Theon poderia nunca a ter detetado, se não fosse a forma como tremia. Jeyne puxara as peles para cima de si para se esconder. De nós? Ou estaria à espera do senhor seu esposo? A ideia de que Ramsay podia estar a caminho fê-lo ter vontade de gritar.
— Senhora. — Theon não conseguia levar-se a chamar-lhe Arya, e não se atrevia a chamar-lhe Jeyne. — Não tendes necessidade de vos esconderdes. Estas são amigas.
As peles mexeram-se. Um olho espreitou, brilhante de lágrimas. Escuro, escuro demais. Um olho castanho.
— Theon?
— Senhora Arya. — Rowan aproximou-se. — Tendes de vir conosco, e depressa. Viemos levar-vos ao vosso irmão.
— Irmão? — A cara da rapariga saiu de debaixo das peles de lobo. — Eu... eu não tenho irmãos.
Esqueceu-se de quem é. Esqueceu o seu nome.
— É verdade — disse Theon. — Mas em tempos tivestes irmãos. Três. Robb, Bran e Rickon.
— Eles estão mortos. Agora não tenho irmãos.
— Tendes um meio irmão — disse Rowan. — O Lorde Corvo.
— Jon Snow?
— Nós levamo-vos a ele, mas tendes de vir imediatamente.
Jeyne puxou as peles de lobo até ao queixo.
— Não. Isto é um truque qualquer. É ele, é o meu... o meu senhor, o meu querido senhor, ele enviou-vos, isto é só um teste qualquer para se assegurar de que o amo. Amo, amo, amo-o mais do que qualquer coisa. — Uma lágrima escorreu-lhe pela cara abaixo. — Dizei-lhe, vós dizei-lhe. Eu faço o que ele quiser... tudo o que ele quiser... com ele ou... ou com o cão ou... por favor... ele não precisa de me cortar os pés, eu não vou tentar fugir, nunca, eu dou-lhe filhos, juro, juro...
Rowan assobiou baixinho.
— Que os deuses amaldiçoem o homem.
— Eu sou uma boa rapariga — choramingou Jeyne. — Eles treinaram-me.
Willow franziu o sobrolho.
— Alguém que a faça parar de chorar. Aquele guarda era mudo, não surdo. Eles vão ouvir.
— Levanta-a, vira-mantos. — Holly tinha a faca na mão. — Põe-na em pé, senão ponho eu. Temos cie ir. Põe a putinha em pé e enfia nela um bocado de coragem ao safanão.
— E se ela gritar? — disse Rowan.
Estamos todos mortos, pensou Theon. Eu disse-lhes que isto era uma loucura, mas nenhum deles quis ouvir. Abel condenara-os. Todos os cantores eram meio loucos. Em canções, o herói salvava sempre a donzela do castelo do monstro, mas a vida não era mais uma canção do que Jeyne era Arya Stark. Os seus olhos são da cor errada. E aqui não há heróis, só rameiras. Mesmo assim, ajoelhou ao lado dela, puxou as peles para baixo, tocou-lhe a cara.
— Tu conheces-me. Sou Theon, tu lembras-te. Eu também te conheço. Sei o teu nome.
— O meu nome? — Ela abanou a cabeça. — O meu nome... é...
Theon pôs-lhe um dedo sobre os lábios.
— Podemos conversar sobre isso mais tarde. Agora precisas de ficar calada. Vem conosco. Comigo. Vamos levar-te daqui. Para longe dele.
Os olhos dela esbugalharam-se.
— Por favor — sussurrou. — Oh, por favor.
Theon enfiou a mão entre as dela. Os tocos dos seus dedos perdidos formigaram quando pôs a rapariga em pé. As peles de lobo caíram de cima dela. Por baixo estava nua, com os pequenos seios pálidos cobertos de marcas de dentes. Ouviu uma das mulheres suster a respiração. Rowan enfiou-lhe uma trouxa de roupa na mão.
— Veste-a. Lá fora está frio. — A Esquila despira-se até ficar em roupa de baixo, e estava a esgravatar numa arca de cedro à procura de qualquer coisa mais quente. Por fim decidiu-se por um dos gibões acolchoados do Lorde Ramsay e por umas bragas muito usadas que adejavam em volta das suas pernas como as velas de um navio numa tormenta.
Com a ajuda de Rowan, Theon enfiou Jeyne Poole na roupa da Es- quila. Se os deuses forem bons e os guardas forem cegos, ela talvez passe.
— Agora vamos sair e descer a escada — disse Theon à rapariga. — Mantém a cabeça baixa e o capuz erguido. Segue Holly. Não corras, não chores, não fales, não olhes ninguém nos olhos.
— Fica perto de mim — disse Jeyne. — Não me abandones.
— Estarei mesmo a teu lado — prometeu Theon enquanto a Esquila se enfiava na cama da Senhora Arya e puxava a manta para cima.
Frenya abriu a porta do quarto.
— Deste-lhe uma boa lavadela, Cheirete? — perguntou o Alyn Azedo quando saíram. O Grunhido deu um apertão ao seio de Willow quando ela passou por ele. Tiveram sorte com a escolha. Se o homem tivesse tocado em Jeyne, a rapariga podia ter gritado. Depois, Holly ter-lhe ia aberto a goela com a faca que levava oculta na manga. Willow limitou-se a torcer-se e a passar por ele.
Por um momento, Theon sentiu-se quase zonzo. Eles nem olharam. Eles não viram. Passámos com a rapariga mesmo nas barbas deles.
Mas na escada o medo regressou. E se deparassem com o Esfolador ou com o Damon Dança-Para-Mim ou com o Walton Pernas-dAço? Ou com o próprio Ramsay? Que os deuses me salvem, o Ramsay não, qualquer um menos ele. De que servia tirarem a rapariga do quarto? Continuavam a estar dentro do castelo, com todos os portões fechados e trancados e as ameias repletas de sentinelas. O mais provável era que os guardas à porta da torre os fizessem parar. Holly e a sua faca de pouco serviriam contra seis homens de cota de malha armados de espadas e lanças.
Mas os guardas lá fora estavam enrolados sobre si próprios junto das portas, de costas viradas para o vento gelado e a neve que ele trazia. Nem o sargento lhes deitou mais que um rápido relance. Theon sentiu uma pontada de piedade por ele e pelos seus homens. Ramsay esfolá-los-ia a todos quando soubesse que a esposa desaparecera, e nem conseguia pensar no que faria ao Grunhido e ao Alyn Azedo.
A menos de dez metros da porta, Rowan deixou cair o balde vazio e as irmãs fizeram o mesmo. A Grande Torre estava quase fora de vista atrás deles. O pátio era um ermo branco, cheio de sons semi ouvidos que ecoavam estranhamente na tempestade. As trincheiras geladas erguiam-se à volta deles, até aos joelhos, depois até à cintura, depois mais alto do que as suas cabeças. Estavam no coração de Winterfell, com o castelo a toda a volta, mas não se via qualquer sinal dele. Facilmente poderiam estar perdidos na Terra de Sempre Inverno, mil léguas para lá da Muralha.