Jon pôs-lhe uma mão no ombro.
— Lamento tanto.
— Porquê? Não foi obra tua. Há sangue nas tuas mãos, sim, tal como nas minhas. Mas o dele não. — Tormund abanou a cabeça. — Ainda tenho dois filhos fortes.
— A tua filha?...
— Munda. — Aquilo trouxe o sorriso de Tormund de volta. — Tomou aquele Lança-Longa Ryk como marido, se é que dá para acreditar. O miúdo tem mais manias que senso, cá para mim, mas trata-a bastante bem. Disse-lhe que se alguma vez lhe fizesse mal, lhe arrancava o membro e o espancava com ele até fazer sangue. — Deu a Jon outra palmada vigorosa. — está na altura de voltares. Se te prender aqui mais tempo, o mais certo é que eles pensem que te comemos.
— Então à aurora. Daqui a três dias. Os rapazes primeiro.
— Eu ouvi-te das primeiras dez vezes, corvo. Um tipo ainda julga que não há confiança entre a gente. — Cuspiu. — Os rapazes primeiro, pois. Os mamutes dão a volta longa. Tu trata de que Atalaialeste os espere. Eu trato de que não haja lutas, nem correrias para o vosso maldito portão. Vamos ser bonitinhos e ordeiros, patinhos em fila. E eu sou a mãe pata. Ha! — Tormund levou Jon para fora da tenda.
Lá fora, o dia estava luminoso e sem nuvens. O sol regressara ao céu após uma ausência de uma quinzena e, a sul, a Muralha erguia-se azul clara e reluzente. Flavia um ditado que Jon ouvira da boca dos homens mais velhos em Castelo Negro: a Muralha tem mais humores que o Rei Louco Aerys, diziam ou, por vezes, a Muralha tem mais humores que uma mulher. Em dias enevoados parecia ser rocha branca. Em noites sem luar era negra como carvão. Em tempestades de neve parecia ser esculpida de neve. Mas em dias como aquele não havia forma de a confundir com qualquer coisa que não fosse gelo. Em dias como aquele, a Muralha reluzia, brilhante como um cristal de septão, com cada fenda e racha iluminada pela luz do sol, enquanto arcos-íris gelados dançavam e morriam por trás de ondulações translúcidas. Em dias como aquele, a Muralha era bela.
O filho mais velho de Tormund estava junto dos cavalos, conversando com o Couros. Entre o povo livre era conhecido como Alto Toregg. Em- bora mal chegasse a ter um par de centímetros de altura a mais do que o Couros, era trinta centímetros mais alto do que o pai. Hareth, o bem constituído rapaz de Vila Toupeira a que chamavam Cavalo, aninhava-se junto da fogueira, com as costas voltadas para os outros dois. Ele e o Couros tinham sido os únicos homens que Jon trouxera consigo para a conferência; mais diam ter sido vistos como um sinal de medo, e vinte homens não serviriam de mais do que dois se Tormund estivesse decidido a derramar sangue. O Fantasma era a única proteção de que Jon precisava; o lobo gigante era capaz de farejar inimigos, mesmo aqueles que escondiam a inimizade atrás de sorrisos.
Mas o Fantasma desaparecera. Jon descalçou uma luva negra, levou dois dedos à boca e assobiou.
— Fantasma! A mim.
Vindo de cima, ouviu-se o súbito som de asas. O corvo de Mormont levantou voo do ramo de um velho carvalho para se ir empoleirar na sela de Jon.
— Grão — gritou. — Grão, grão, grão.
— Tu também me seguiste? — Jon estendeu a mão para enxotar a ave, mas acabou por lhe afagar as penas. O corvo inclinou o olho para ele.
— Snow — resmungou, bandeando a cabeça com ar sabedor. Em seguida, o Fantasma saiu de entre duas árvores, com Val a seu lado.
Parece que o lugar daqueles dois é um com o outro. Val estava toda vestida de branco; bragas de lã branca enfiadas em botas de cano alto de couro branco, um manto de pele branca de urso, preso ao ombro por uma cara esculpida de represeiro, túnica branca com presilhas de osso. A sua respiração também era branca... mas os olhos eram azuis, a longa trança da cor do mel escuro, o seu rosto estava enrubescido pelo frio. Passara-se bastante tempo desde que Jon vira algo tão adorável.
— Estivestes a tentar roubar-me o lobo? — perguntou-lhe.
— E porque não? Se todas as mulheres tivessem um lobo gigante, os homens seriam muito mais simpáticos. Até os corvos.
— Ha! — riu-se Tormund Terror dos Gigantes. — Não discutas com aquela, Lorde Snow, é esperta demais para gente como tu e eu. É melhor que a roubes depressa antes que Toregg acorde e a leve primeiro.
Que tinha aquele imbecil do Axell Florent dito sobre Val? "Uma rapariga núbil, e que não faz mal à vista. Boas ancas, bons seios, bem feita para parir filhos." Tudo bastante verdadeiro, mas a selvagem era muito mais do que isso. Demonstrara-o encontrando Tormund onde patrulheiros experientes da Patrulha tinham falhado. Ela pode não ser uma princesa, mas daria uma esposa digna para qualquer senhor.
Mas essa ponte fora queimada há muito tempo, e fora o próprio Jon a atirar o archote.
— Que faça bom proveito a Toregg — anunciou. — Eu prestei um juramento.
— Ela não se importa. Pois não, rapariga?
Val deu uma palmadinha na longa faca de osso que trazia à anca.
— O Lorde Corvo pode esgueirar-se para a minha cama em qualquer noite em que se atreva. Depois de ser castrado, cumprir esse juramento será muito mais fácil para ele.
— Ha! — voltou Tormund a resfolegar. — Estás a ouvir isto, Toregg? Fica longe desta mulher. Eu já tenho uma filha, não preciso de outra. — Abanando a cabeça, o chefe selvagem baixou-se para regressar à sua tenda.
Enquanto Jon coçava o Fantasma atrás da orelha, Toregg trouxe o cavalo de Val. Ela ainda montava o garrano cinzento que Mully lhe dera no dia em que partira da Muralha, uma coisinha hirsuta e atrofiada, cega de um olho. Quando o virou para a Muralha, perguntou:
— Como passa o monstrinho?
— Está o dobro de quando nos deixastes, e três vezes mais ruidoso. Quando quer teta, consegue-se ouvi-lo chorar em Atalaialeste. — Jon montou o seu cavalo.
Val pôs-se a seu lado.
— Então... trouxe-vos Tormund, como disse que traria. E agora? Vou ser devolvida à minha antiga cela?
— A vossa antiga cela está ocupada. A Rainha Selyse reivindicou para si a Torre do Rei. Lembrais-vos da Torre de Hardin?
— Aquela que parece estar a ponto de ruir?
— Já tem esse aspeto há cem anos. Mandei preparar o piso superior para vós, senhora. Tereis mais espaço do que na Torre do Rei, embora talvez não estejais tão confortável. Nunca ninguém lhe chamou Palácio de Hardin.
— Eu preferia a liberdade ao conforto num piscar de olhos.
— Liberdade de castelo tereis, mas lamento dizer que tereis de permanecer cativa. No entanto, posso prometer-vos que não sereis incomodada por visitantes indesejados. São os meus próprios homens que guardam a Torre de Hardin, não os da rainha. E Wun Wun dorme no átrio.
— Um gigante como protetor? Nem Dalla se podia gabar de tal coisa.
Os selvagens de Tormund viram-nos passar, espreitando de tendas e
abrigos erguidos sob árvores desprovidas de folhas. Por cada homem em idade de combater, Jon viu três mulheres e outras tantas crianças, coisas de caras descarnadas com bochechas encovadas e olhos fixos. Quando Mance