— Farei o melhor que puder, Jon. Senhor, quero eu dizer.
— Vamos precisar de preparar todos os carros e carroças para transportar o povo livre para as suas novas casas. Othell, irás tratar disso.
Yarwyck fez uma careta.
— Sim, senhor comandante.
— Lorde Bowen, vós recolhereis as taxas. O ouro e a prata, o âmbar, os torques, braçadeiras e colares. Organizai-as, contai-as, assegurai-vos de que chegam em segurança a Atalaialeste.
— Sim, Lorde Snow — disse Bowen Marsh.
E Jon pensou: Gelo, disse ela, e punhais no escuro. Sangue gelado, vermelho e duro, e aço nu. A sua mão da espada fletiu. O vento estava a aumentar.
CERSEI
Cada noite parecia mais fria do que a anterior.
A cela não tinha nem lareira nem braseiro. A única janela era alta demais para lhe fornecer uma vista e era pequena demais para que por ela se esgueirasse, mas tinha mais do que o tamanho suficiente para deixar entrar o frio. Cersei rasgara a primeira combinação que lhe tinham dado, exigindo a devolução da sua roupa, mas isso só a deixara nua e a tremer. Quando lhe trouxeram outra combinação, enfiara-a pela cabeça e agradecera-lhes, engasgando-se nas palavras.
A janela também deixava entrar sons. Essa era a única maneira que a rainha tinha de saber o que podia estar a acontecer na cidade. As septãs que lhe traziam comida não lhe queriam dizer nada.
Odiava isso. Jaime deveria estar a caminho para a ir buscar, mas como saberia quando ele chegasse? Cersei só esperava que o irmão não fosse suficientemente insensato para se precipitar à frente do seu exército. Precisaria de todas as espadas para lidar com a horda esfarrapada de Pobres Companheiros que rodeava o Grande Septo. Fazia frequentemente perguntas sobre o gémeo, mas as carcereiras não lhe respondiam. Também perguntava por Sor Loras. Segundo as últimas notícias, o Cavaleiro das Flores estava a morrer em Pedra do Dragão, de ferimentos sofridos enquanto tomava o castelo. Ele que morra, pensou Cersei, e que se despache. A morte do rapaz quereria dizer um lugar vago na Guarda Real, e isso poderia ser a sua salvação. Mas as septãs tinham a boca tão fechada sobre Loras Tyrell como sobre Jaime.
O Lorde Qyburn fora o seu último e único visitante. O seu mundo tinha uma população de quatro pessoas: ela e as três carcereiras, piedosas e inflexíveis. A Septã Unella tinha ossos grandes e era máscula, com mãos calosas e feias feições carrancudas. A Septã Moelle tinha um rígido cabelo branco e pequenos olhos maus perpetuamente semicerrados em suspeita, espreitando de uma cara enrugada, tão afilada como a lâmina de um machado. A Septã Scolera era grossa de cintura e baixa, e possuía seios pesados, uma pele cor de azeitona e um cheiro azedo, como o do leite prestes a estragar-se. Traziam-lhe comida e água, esvaziavam-lhe o penico e levavam-lhe a combinação para lavar de tantos em tantos dias, deixando-a enrolada nua sob a manta até que lhe fosse devolvido. Por vezes, Scolera lia-lhe passagens da Estrela de Sete Pontas ou d'O Livro das
Preces Sagradas, mas à parte isso nenhuma falava com ela nem respondia a nenhuma das suas perguntas.
Odiava e desprezava as três, quase tanto como odiava e desprezava os homens que a tinham traído.
Falsos amigos, criados traiçoeiros, homens que lhe haviam declarado um amor imorredouro, mesmo o seu próprio sangue... todos a tinham abandonado na sua hora de necessidade. Osney Kettleblack, esse fracote, quebrara sob o látego, enchendo os ouvidos do Alto Septão com segredos que devia ter levado para a sepultura. Os irmãos, escumalha das ruas que ela elevara bem alto, nada tinham feito além de ficarem de braços cruzados. Aurane Waters, o seu almirante, fugira para o mar com os dromones que construíra para ele. Orton Merryweather fugira de volta para Mesalonga, levando a mulher, Taena, que fora a única amiga verdadeira da rainha naqueles tempos terríveis. Harys Swyft e o Grande Meistre Pycelle tinham-na abandonado ao cativeiro e tinham oferecido o reino aos mesmíssimos homens que haviam conspirado contra ela. Meryn Trant e Boros Blount, os protetores ajuramentados do rei, não se viam em lado nenhum. Até o primo Lancei, que em tempos afirmara amá-la, era um dos acusadores. O tio recusara-se a ajudá-la a governar quando ela quisera fazer dele Mão do Rei.
E Jaime...
Não, nisso não podia acreditar, não queria acreditar. Jaime pôr-se-ia ali assim que soubesse da situação em que a irmã se encontrava." Vem imediatamente," escrevera-lhe. "Ajuda-me. Salva-me. Preciso agora de ti como nunca antes precisei. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Vem imediatamente" Qyburn jurara que se asseguraria de que a carta chegasse ao gémeo, o qual andava pelas terras fluviais com o seu exército. Mas Qyburn não regressara. Tanto quanto soubesse, podia estar morto, com a cabeça empalada num espigão por cima dos portões da fortaleza da cidade. Ou talvez estivesse a definhar numa das celas negras sob a Fortaleza Vermelha, sem ter ainda enviado a carta. A rainha perguntara por ele uma centena de vezes, mas as suas captoras não queriam falar dele. Tudo o que sabia com certeza era que Jaime não viera.
Ainda não, dizia a si própria. Mas virá em breve. E quando vier, o Alto Pardal e as suas cadelas cantarão outra cantiga.
Odiava sentir-se impotente.
Ameaçara, mas as suas ameaças tinham sido recebidas com caras cie pedra e orelhas moucas. Ordenara, mas as suas ordens tinham sido ignoradas. Invocara a misericórdia da Mãe, apelando à solidariedade natural de uma mulher por outra, mas as três septãs engelhadas deviam ter posto de parte a sua condição de mulheres quando proferiram os votos. Tentara o encanto, falando-lhes com gentileza, aceitando docilmente cada novo ultraje. Não se deixaram influenciar. Oferecera-lhes recompensas, prometera clemência, honrarias, ouro, cargos na corte. Trataram as promessas como trataram as ameaças.
E rezara. Oh, como rezara. Eram preces que elas desejavam, portanto servira-lhas, servira-as de joelhos como se fosse uma comum prostituta de rua e não uma filha do Rochedo. Rezara por alívio, por salvamento, por Jaime. Em voz alta, pedira aos deuses para a defenderem na sua inocência; em silêncio rezara para que os seus acusadores sofressem mortes súbitas e dolorosas. Rezara até ficar com os joelhos em carne viva e ensanguentados, até sentir a língua tão inchada e pesada que corria o risco de sufocar com ela. Todas as preces que lhe tinham sido ensinadas em rapariga ocorreram a Cersei na sua cela, e inventara novas conforme foram sendo necessárias, apelando à Mãe e à Donzela, ao Pai e ao Guerreiro, à Velha e ao Ferreiro. Até rezara ao Estranho. Numa tempestade, qualquer deus serve. Os Sete mostraram-se tão surdos como os seus servos terrenos. Cersei entregara a todos as palavras que tinha em si, entregara-lhes tudo menos lágrimas. Isso, nunca terão, dissera a si própria.
Odiava sentir-se fraca.
Se os deuses lhe tivessem dado a força que haviam dado a Jaime e àquele fanfarrão idiota do Robert, teria criado a sua própria fuga. Oh, uma espada, e a força para a brandir. Tinha um coração de guerreiro, mas os deuses na sua cega malícia haviam-lhe dado o débil corpo de uma mulher. A rainha tentara combatê-las no início, mas as septãs tinham-se-lhe sobreposto. Eram demasiadas, e eram mais fortes do que pareciam. Velhas feias, todas elas, mas todas aquelas preces e esfregas e espancamentos de noviças com paus tinham-nas deixado duras como raízes.
E não a deixavam descansar. De noite ou de dia, sempre que a rainha fechava os olhos para dormir, uma das suas captoras apareceria para a acordar e exigir que confessasse os seus pecados. Estava acusada de adultério, fornicação, alta traição, até assassínio, pois Osney Kettleblack confessara ter sufocado o último Alto Septão às suas ordens.