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Novos campos e novas leituras contemporâneas: economia e sociedade

Conforme vimos até aqui, as posições de que os fins do Império Romano estão relacionados ora às agressões e penetrações dos povos não latinos, ora a fatores internos – que podiam ir desde aspectos sociais a religiosos – foram recorrentes em um longo período que principia à própria época dos acontecimentos mais marcantes que anunciaram a queda ou o declínio do Império Romano. Essas posições, de lado a lado, atingem os séculos XIX e XX com a célebre querela sobre o “assassinato” ou a “morte natural” do Império Romano. Mas logo abririam espaço para outras proposições, mais tendentes a enxergar a transformação de um período em outro, do que o fim taxativo de um grande período da história. Estas novas proposições, naturalmente, são beneficiadas precisamente pela multiplicação de novos campos históricos, para além da história política tradicional.

A emergência de campos históricos enfatizando a economia e as relações sociais, por exemplo, abre um certo conjunto de possibilidades e de novas leituras possíveis, inclusive permitindo novas periodizações.

Uma história econômica ou social do Império Romano, por exemplo, impõe cada qual o seu conjunto de recortes que em nada coincidirá com o conjunto produzido pela história política do tipo que era tradicionalmente realizado no século XIX. Seja no âmbito dos historiadores marxistas do século XX, seja no âmbito dos historiadores que são influenciados pela abordagem econômica e social da primeira fase dos Annales, surgem aqui novos modelos narrativos e analíticos que geram as suas próprias periodizações.

Apenas para citar o âmbito das análises marxistas, outros serão os acontecimentos processuais que deverão ajudar a compreender a passagem da Antiguidade à Idade Média. Surgem aqui novas possibilidades, considerando as duas definições da história propostas por Marx – de um lado a de que a história é a “história da transformação dos modos de produção”, e, de outro, a ideia de que a mesma é a “história da luta de classes”. Para o caso do estudo da passagem da civilização romana para as civilizações medievais, impõe-se de um lado o acontecimento processual da superação do modo de produção escravista em um Império que nos seus limites já não consegue conservar a acumulação de mão de obra escrava; de outro lado, destacam-se as crises sociais do século III como acontecimentos fundamentais. Conforme a análise marxista em questão centre sua atenção mais na ultrapassagem do “modo de produção” ou na “luta de classes”, tem-se a possibilidade de matizes diferenciados dentro da análise da passagem da Antiguidade Romana à Medievalidade Ocidental, segundo a abordagem oferecida pelos princípios do materialismo histórico. Apenas para citar dois exemplos, indicaremos as análises propostas por Staerman (1976) e por Andersen (2000).

Seria possível citar também como exemplo de análise que traria a primeiro plano a economia em sua relação com a sociedade a avaliação de Max Weber sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média (WEBER, 1976). Também considerando importantes as transformações no regime de trabalho e exploração econômica – e avaliando tanto o colapso do sistema escravista como a perspectiva da emergência de uma economia natural – Weber concede uma atenção especial à passagem de uma civilização essencialmente urbanizada para uma civilização que vai se ruralizando nos seus aspectos essenciais. Esta consideração de que o traço essencial da Antiguidade Clássica é a combinação de escravismo e urbanização leva Weber a examinar atentamente o desaparecimento gradual do comércio local e de longa distância, já desde fins do século II.

É também uma explicação e uma periodização atenta aos movimentos comerciais a que nos apresenta o medievalista belga Henri Pirenne (s.d.). Desenvolvendo uma tese que posteriormente desencadeou muitas críticas, Pirenne destaca como acontecimento mais relevante no decurso de estabelecimento da Idade Média um processo aparentemente político, mas que na verdade tem a sua importância precisamente em virtude dos efeitos econômicos que desencadeia. O grande divisor de águas, para o historiador belga, é o acontecimento da expansão islâmica no século VIII, precisamente porque, segundo a sua análise, o domínio islâmico do Mediterrâneo Ocidental não apenas quebrará uma unidade mediterrânica que teria caracterizado a Europa até o século VIII, como porque ao fazer isso se rompem os caminhos comerciais que sustentavam até então a vida material do Ocidente Europeu, forçando o deslocamento do eixo político-geográfico da nascente civilização do Ocidente Medieval para o centro da Europa. Carlos Magno – representando o mundo carolíngio – surge na sua análise como o inevitável contraponto histórico de Maomé – signo da expansão islâmica.

Novas leituras: cultura, psicologia, mentalidade, vida cotidiana

Se o diálogo mais intenso com a economia permitiu o desenvolvimento de novas análises e organizações cronológicas da passagem da Antiguidade Romana à Medievalidade Europeia, o século XX também trouxe uma atenção especial a questões direcionadas para a percepção da psicologia do homem, o estudo das mentalidades, o exame da vida cotidiana. O mesmo movimento de expansão que permitiria que se afirmasse uma psico-história, uma história das mentalidades, uma história do cotidiano, e tantos novos domínios – também permitiu que novas dimensões fossem priorizadas pelos historiadores deste período que permeia a passagem da Antiguidade à Idade Média.

Em parte, a multiplicação de novos pontos de vista sobre a passagem é produto tanto de uma diversificação temática, mais atenta às diversas dimensões da vida humana e social, como de novas alternativas de fontes e novos concursos interdisciplinares. Tanto a leitura das continuidades como das rupturas envolvidas na passagem do mundo antigo à medievalidade adquirem outras cores com a diversificação de novas possibilidades de fontes. É assim que a ideia de “queda” é mais uma vez retomada por Brian-Ward Perkins, um arqueólogo que recria através de diversificadas fontes da cultura material um contundente quadro da dura e violenta realidade cotidiana dos que vivenciaram a passagem do mundo antigo para os novos tempos (WARD PERKINS, 2005). Ao enfatizar a ruptura, a obra se confronta, pode-se dizer que corajosamente, com os setores historiográficos que enfatizam as continuidades e que, mesmo em alguns casos, minimizam os aspectos que remetem às violências envolvidas no processo de adaptação das populações do Império Romano ao domínio germânico. Rigorosamente falando, podem ser percebidos reflexos das discussões contemporâneas em torno da unidade europeia no confronto da obra de Brain-Ward Perkins contra todo um amplo setor de estudos contemporâneos que enfatizam os aspectos multiculturalistas, adaptativos e mesmo pacíficos desta movimentação de populações que rompe as fronteiras do Império. A ênfase nas continuidades, minimizando as violências do processo, viria obviamente ao encontro da posição da União Europeia nos dias de hoje (discurso em favor de uma unidade e identidade europeias, sem depreciar circuitos culturais relacionados à ancestralidade das diversas realidades nacionais europeias). Mas esta é certamente uma discussão que nos levaria muito longe.