Estou estrepado, neste calabouço nojento que, parece, é inundado duas vezes por dia. O calor é tão abafado, que tiro primeiro a camisa, depois as calças. Tiro os sapatos e dependuro tudo nas grades.
Dizer que andei 2 500 quilômetros para chegar a isto! Na verdade, que magnífico resultado! Meu Deus! Será que você vai me abandonar depois de ter sido tão generoso comigo? É possível que você, meu Deus, esteja aborrecido, porque, afinal, me deu a liberdade, a mais segura, a mais bonita. Me deu uma comunidade que me adotou inteiramente. Me deu, não uma, mas até duas mulheres fabulosas. E o sol e o mar. E uma palhoça onde eu era o chefe incontestado. Esta vida na natureza, esta existência primitiva, como era doce e tranqüila! Este presente único, que você me deu, de ser livre, sem polícia, sem juiz, sem invejosos nem malvados em torno de mim! E eu não soube dar o valor justo a este presente. Este mar tão azul, ora verde e quase negro, estas alvoradas e crepúsculos que banhavam de paz tão serenamente suave, este modo de viver sem dinheiro, onde não me faltava nada de essencial à vida de um homem, tudo isso eu calquei com os pés, tudo isso desprezei. Para ir aonde? Para sociedades que não querem me aceitar. Para seres que não se dão sequer ao trabalho de saber o que existe em mim de recuperável. Para um mundo que me repele, que me joga longe de toda esperança. Para coletividades que não pensam senão numa coisa: me aniquilar de qualquer maneira.
Quando receberem a notícia de minha captura, bem que vão gozar os doze patetas do júri, o podre do Polein, os tiras e o procurador. Porque certamente vai haver um jornalista para mandar a notícia à França.
E o meu pessoal? Eles que, quando tiveram de receber a visita dos guardas lhes anunciando minha evasão, devem ter ficado tão felizes com o fato de que seu filho ou seu irmão haja escapado dos carrascos! Agora, ao saberem que fui recapturado, vão sofrer outra vez.
Fiz mal em renegar minha tribo. Sim, posso dizer “minha tribo”, porque todos eles me adotaram. Fiz mal e mereço o que me acontece. E no entanto… Não fugi da cadeia para aumentar a população de índios da América do Sul. Bom Deus, compreenda que devo viver outra vez numa sociedade normalmente civilizada e demonstrar que posso fazer parte dela sem ser um perigo para ela. É o meu verdadeiro destino, com você ou sem a sua ajuda.
Preciso chegar a provar que posso ser, que sou – e que serei – um ser normal, ou até melhor do que os outros indivíduos de qualquer coletividade de qualquer país.
Estou fumando. A água começa a subir. Já chega aos tornozelos. Chamo:
– Negro, quanto tempo a água fica na cela?
– Isso depende da força da maré. Uma hora, no máximo duas.
Ouço vários prisioneiros gritarem: “Está llegando!” (Está chegando!)
Devagar, bem devagar, a água sobe. Os mestiços e o preto estão empoleirados na grade. As pernas deles pendem para o corredor e seus braços se agarram a duas barras. Ouço ruído na água: é um rato de esgoto, grande como um gato, que vem nadando. Ele procura subir pela grade. Apanho um dos meus sapatos e, quando vem para o meu lado, lhe dou um golpe violento na cabeça. O rato sai guinchando pelo corredor. O negro me diz:
– Francês, você esta dando murro à toa. Não vai acabar, se quiser matar todos. Suba na grade, agarre-se nas barras e fique sossegado.
Sigo o seu conselho, mas as barras me cortam as coxas, não consigo resistir por muito tempo nesta posição. Destampo meu balde-latrina, tirando meu paletó, e o amarro nas barras, escorregando, depois, por cima dele. Tenho, assim, uma espécie de cadeira, que me permite suportar melhor a posição, porque agora estou quase sentado.
Esta invasão da água, de ratos, de centopeias, de caranguejos minúsculos, trazidos pela água, é a coisa mais repugnante, mais deprimente que um ser humano possa ser obrigado a suportar. Quando a água se retira, uma hora depois, fica uma lama viscosa de mais de 1 centímetro de espessura. Calço os sapatos para não chafurdar neste lodo. O negro me joga um pedaço de tábua de 10 centímetros de comprimento e me diz para empurrar a lama para o corredor, começando pela tábua, onde devo dormir, e, depois, pegando do fundo de minha cela em direção à entrada. Esta ocupação me toma uma boa meia hora e me obriga a pensar somente nela. Já é alguma coisa. Antes da maré seguinte, não terei água, isto é, durante onze horas exatamente, uma vez que a última hora é a da inundação. Para ter água de novo, é preciso contar as seis horas em que o mar baixa e as cinco horas em que sobe. Faço esta reflexão um pouco ridícula: “Papillon, você está destinado a viver em função das marés. A lua, quer você queira ou não, tem para você muita importância, para você e para a sua vida. Foi graças às marés, enchentes e vazantes, que você pôde sair facilmente do Maroni, quando fugiu da prisão de forçados. Foi calculando a hora da maré que saiu de Trinidad e de Curaçau. Se parou em Rio Hacha, foi porque a maré não estava bastante forte para que você se afastasse mais depressa e, agora, aí está você na dependência permanente desta maré”.
Entre os que lerão estas páginas, se um dia forem publicadas, alguns talvez sintam diante da narração do que tive de suportar nos calabouços colombianos um pouco de piedade por mim. Serão os bons. Os outros, os primos-irmãos dos doze imbecis que me condenaram, ou os irmãos do procurador, dirão: “Foi bem feito para ele; se ficasse na prisão, isso não lhe aconteceria”. Mas, vá lá, querem que lhes diga uma coisa, tanto a vocês, os bons, quanto a vocês, os idiotas? Não estou desesperado, de maneira nenhuma, e lhes direi ainda melhor: prefiro estar nestes calabouços da velha fortaleza colombiana, construída pela inquisição espanhola, do que nas Ilhas da Salvação, onde devia estar agora. Aqui, ainda me resta muita coisa para tentar a fuga; e, neste buraco fedorento, apesar de tudo, estou a 2 500 quilômetros da prisão de forçados. Vai ser preciso tomarem realmente muitas precauções para me obrigarem a fazer o caminho de volta. Só sinto falta de uma coisa: minha tribo guajira, Lali e Zoraima, aquela liberdade na natureza, sem o conforto de um civilizado, mas também sem polícia, sem prisão, sem calabouços. Penso que nunca passaria pela cabeça dos meus selvagens a idéia de aplicar suplício semelhante a um inimigo e, menos ainda, a um homem como eu, que não cometeu nenhum delito contra os colombianos.
Deito-me sobre a tábua e fumo dois ou três cigarros, no fundo de minha cela, para que os outros não me vejam fumar. Ao entregar a tabuazinha ao negro, joguei-lhe um cigarro aceso e ele, por pudor diante dos demais, fez como eu. Esses detalhes, que parecem um nada, têm, na minha opinião, muito valor. Isso prova que nós, os párias da sociedade, temos, pelo menos, um resto de savoir-vivre e um delicado respeito humano.
Aqui, não estou como na Conciergerie. Posso sonhar e vagabundear pelo espaço, sem ter de botar um lenço para proteger meus olhos de uma luz muito forte.
Quem pode ter avisado a polícia de que eu estava no convento? Ah, se eu souber um dia, a pessoa me pagará! E então digo para mim mesmo: “Deixe de bobagem, Papillon! Com o que você tem a fazer na França para se vingar, esqueça o resto; você não veio a este país perdido para fazer mal! Esta pessoa será certamente punida pela própria vida e, se você tiver de voltar um dia, não será para se vingar, mas para dar felicidade a Lali e Zoraima e, talvez, aos filhos que elas tiverem de você. Se voltar a este buraco, voltará para elas e para todos os guajiros, que lhes deram a honra de acolhê-lo entre eles como se você fosse um deles. Estou ainda no caminho da podridão, mas, embora num calabouço submarino, estou, queiram ou não, em plena fuga e no caminho da liberdade. Isso é que é impossível negar”.