Recebi papel, um lápis, dois maços de cigarros. Já lá vão três dias que estou aqui. Deveria dizer três noites, porque aqui faz sempre noite. Enquanto acendo um cigarro Piel Roja, não posso deixar de admirar a dedicação mútua dos prisioneiros. O colombiano que me passa o pacote corre um grande risco. Se for surpreendido, terá de passar, sem dúvida, uma temporada nestes mesmos calabouços. Ele sabe disso e, quando topa me ajudar no meu calvário, mostra-se não só corajoso, mas de uma nobreza pouco comum. Sempre pelo mesmo sistema do papel em chamas, leio: “Papillon, a gente sabe que você está agüentando bem. Viva! Mande notícias. De nossa parte, estamos sempre na mesma. Uma boa irmã, que fala francês, veio ver você, não deixaram que falasse conosco, mas um colombiano nos disse que teve tempo de lhe dizer que o francês está nos calabouços da morte. Ela disse: voltarei. É tudo. Os amigos o abraçam”.
Não foi fácil responder, mas eu consegui, ainda assim, escrever: “Obrigado por tudo. A coisa vai, eu agüento. Escrevam ao cônsul francês, a gente nunca sabe. Mandem as coisas sempre pelo mesmo cara, para que, em caso de acidente, só um seja punido. Não toquem nas pontas das flechas. Viva a fuga!”
Somente 28 dias depois, com a intervenção do cônsul belga (um homem chamado Klausen), foi que saí deste antro imundo. O negro, que se chamava Palacios e tinha saído três semanas após minha chegada, teve a idéia de dizer à sua mãe, por ocasião de uma visita para avisar ao cônsul belga que havia um cidadão belga naqueles calabouços. Esta idéia lhe veio quando viu, num domingo, um prisioneiro belga recebendo a visita do cônsul.
Um dia, portanto, me levaram ao escritório do comandante, que me disse:
– O senhor é francês, por que faz reclamações ao cônsul belga?
No escritório, um senhor vestido de branco, de uns cinqüenta anos, os cabelos louros quase brancos por cima de uma cara redonda, fresca e rosada, estava sentado numa poltrona, com uma pasta de couro sobre os joelhos. Imediatamente compreendi a situação:
– É o senhor quem diz que sou francês. Reconheço que fugi da justiça francesa, mas sou belga.
– Ah! O senhor está vendo? – diz o homenzinho com cara de padre.
– Por que o senhor não me disse?
Pensei que isto não tinha importância alguma para o senhor, porque realmente não cometi nenhum delito sério na sua terra, a não ser o de fugir da prisão, o que é normal para todo prisioneiro.
– Bueno, vou botar o senhor com os seus camaradas. Mas, senhor cônsul, eu lhe aviso que, na primeira tentativa de evasão, o remeterei para o lugar donde veio. Levem-no ao barbeiro, depois ponham-no com os seus cúmplices.
– Obrigado, senhor cônsul – digo em francês -, muito obrigado por se ter incomodado por minha causa.
– Deus do céu! Como o senhor deve ter sofrido nestes horríveis calabouços! Depressa, vá embora. É preciso que ele não mude de opinião, este animal. Voltarei para ver o senhor. Até logo.
O barbeiro não estava e me botaram com meus amigos. Eu devia estar com uma cara dos diabos, porque eles não paravam de falar:
– Mas não é você! Não pode ser! Que é que esses canalhas lhe fizeram para deixar você deste jeito? Fale para a gente, diga alguma coisa. Será que você está cego? Que tem nos olhos? Por que fecha e abre os olhos sem parar?
– É que não consigo me acostumar com esta luz. Ela é luminosa demais para mim, fere meus olhos habituados à escuridão.
Sento-me, olhando o interior da cela.
– Por aqui, a coisa é melhor.
– Você cheira a podre, é incrível! Mesmo seu corpo cheira a podre!
Fiquei nu e eles colocaram meus troços perto da porta. Meus braços, minhas costas, minhas coxas, minhas pernas estavam cheios de picadas vermelhas, como a dos percevejos na França, e de mordidas de caranguejos minúsculos, que flutuavam com a maré. Eu estava horroroso, não precisava de um espelho para saber disso. Os cinco forçados, que tanta coisa já tinham visto, pararam de falar, comovidos por me verem nesse estado. Clousiot chama um policial e lhe diz que, se não tem barbeiro, tem água no pátio. O outro lhe responde para esperar a hora da saída.
Saio nu. Clousiot leva as roupas limpas que vou vestir. Ajudado por Maturette, eu me lavo e torno a me lavar com o sabão preto do país. Quanto mais me lavo, mais imundície sai. Por fim, depois de me ensaboar e enxaguar muitas vezes, sinto que estou limpo. Enxugo-me em cinco minutos no sol e visto minha roupa. Chega o barbeiro. Ele quer pelar minha cabeça, mas eu lhe digo:
– Não. Corte meus cabelos do jeito normal e faça minha barba.
Eu lhe pagarei.
– Quanto?
– Um peso.
– Faça bem o serviço – diz Clousiot – e eu lhe dou 2 pesos.
Banhado, barbeado, os cabelos bem cortados, roupa limpa, sinto que volto a viver. Meus amigos não param de me interrogar:
– E a água, subia a que altura? E os ratos? E as centopeias? E a lama? E os caranguejos? E a merda dos barris? E os mortos que saem? Eram de morte natural ou suicidas enforcados? Ou tinham sido “suicidados” pelos policiais?
As perguntas não paravam e, de tanto falar, acabei com sede. No pátio havia um vendedor de café. Durante as três horas que a gente passou no pátio, bebi, no mínimo, uns dez cafés fortes, adoçados com papelón (açúcar mascavo). Este café me parecia a melhor bebida do mundo. O negro do calabouço da frente veio me dar bom dia. Ele me explica, falando baixinho, a estória do cônsul belga com sua mãe. Eu lhe aperto a mão. Ele está muito orgulhoso de ter sido a origem de minha saída. Sai um bocado feliz, dizendo para mim: “A gente fala amanhã. Por hoje, foi bastante”.
Tenho a impressão de que a cela de meus amigos é um palácio. Clousiot tem uma rede, que lhe pertence, que comprou com dinheiro seu. Ele me obriga a dormir nela. Eu me estico, atravessado. Ele se espanta e eu lhe explico que se deita no sentido do comprimento quem não sabe se servir de uma rede.
Comer, beber, dormir, jogar damas ou baralho, com cartas espanholas, falar espanhol uns com os outros ou com os policiais e prisioneiros colombianos, para aprender bem a língua do país, todas essas atividades enchiam nosso dia e mesmo uma parte da noite. É duro ficar deitado nove horas por noite. Recordo, então, com muita intensidade, os detalhes da fuga do hospital de Saint-Laurent para Santa Marta; eles chegam, desfilam diante de mim e reclamam uma continuação. O filme não pode parar aí, é preciso que continue e ele continuará, meu caro. Deixe que eu recupere as forças e virão novos episódios, tenha confiança em mim! Achei minhas flechinhas e duas folhas de coca, uma completamente seca, a outra ainda um pouco verde. Fico mascando a folha verde. Todos me olham assombrados. Explico aos meus amigos que são as folhas com as quais se fabrica a cocaína.
– Não brinca!
– Experimente.
– Sim, é verdade, o negócio insensibiliza a língua e os lábios.
– Vendem isto por aqui?
– Não sei. Clousiot, como é que você se arruma para fazer aparecer a gaita de tempos em tempos?
– Troquei em Rio Hacha e, desde então, tenho sempre dinheiro na vista de todo mundo.
– Tenho trinta e seis moedas de ouro de 100 pesos com o comandante. Cada moeda vale 300 pesos. Um dia desses, vou levantar o problema.
– Este pessoal é fominha, é melhor oferecer a ele um negócio qualquer.
– Boa idéia.
Domingo, falei com o cônsul belga e o prisioneiro belga. Este prisioneiro cometeu um abuso de confiança com relação a uma companhia bananeira americana. O cônsul se pôs à minha disposição para nos proteger. Preencho uma ficha, onde declaro que sou filho de pais belgas, nascido em Bruxelas. Eu lhe falei das irmãs e das pérolas. Mas ele é protestante e não conhece nem as irmãs, nem os padres. Conhece um pouquinho o bispo. Quanto às moedas, seu conselho é não reclamar. Muito arriscado. Ele deverá ser avisado, com 24 horas de antecedência, a respeito de nossa partida para Barranquilla.