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Peregrinação Fernando Mendes Pinto

Sempre em misérias e e m pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, M.

acáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida.

Como António de Faria

pelejou com o cor6ário Coja Acém e do que com ele lhe 6ucedeu Velejando nós pelo rio acima com vento e maré que Nosso Senhor então nos deu, em menos de uma hora chegámos onde os inimigos estavam, que até este tempo nos não tinham ainda sentido; mas como eles eram ladrões e se temiam da gente da terra, pelos males e roubos que ali cada dia lhe faziam, estavam tão aparelhados e tinham tão boa vigia que em nos vendo tocaram um sino muito apressadamente, ao som do qual foi tamanho o rumor e revolta de gente, tanto da que estava em terra como da que estava embarcada, que não havia quem se ouvisse com eles, o que vendo António de Faria, bradou logo, dizendo:

- Eia, senhores e irmãos meus, a eles, com o nome de Cristo, antes que as suas lorchas lhes acudam! Santiago!

E disparando toda a nossa artilharia, prouve a Nosso Senhor que se empregou tão bem que dos mais esforçados que já neste tempo estavam em cima do chapitéu, veio logo abaixo a maior parte, feitos em pedaços, o que foi um bom prognóstico do nosso desejo.

Após isto, os nossos atiradores, que seriam cento e sessenta, pondo fogo a toda a arcabuzaria, conforme o sinal que lhes fora feito, os conveses de ambos os juncos ficaram tão vazios da multidão que antes neles se via, que já nenhum dos inimigos ousava aparecer. Os nossos dois juncos, abalroando então os dois dos inimigos assim como estavam, a briga se travou entre todos, de maneira que realmente confesso que não me atrevo a particularizar o que nela se passou, ainda que me achasse presente, porque ainda neste tempo a manhã não era bem clara, e a

revolta dos inimigos e nossa era tamanha, juntamente com o estrondo dos tambores, bacias e sinos, e com as gritas e brados de uns e dos outros, acompanhados de muitos pelouros de artilharia e de arcabuzaria, e na terra o retumbar dos ecos pelas concavidades dos vales e outeiros, que as carnes tremiam de medo; e durando assim esta briga por espaço de um quarto de hora, as suas lorchas e lanteas lhes acudiram de terra com muita gente de refor

ço, vendo o que, um tal Diogo Meireles, que vinha no junco de Ouiay Panjão, e que o seu condestável, dos tiros que fazia nenhum acertava, por andar tão pasmado e fora de si que nenhuma coisa acertava, estando ele então para dar fogo a um camelo, meio turvado, o empurrou tão de rijo que deu com ele da escotilha abaixo, dizendo:

- Guar-te daí, vilão, que não prestas para nada, porque este tiro neste tempo é para os homens como eu, e não para os tais como tu!

E apontando o camelo por suas miras e regra de esquadria, de que sabia razoavelmente, deu fogo à peça que estava carregada com pelouro e roca de pedras, e tomando a primeira lorcha que vinha na dianteira, por capitânia das quatro, a descoseu toda de popa à proa pelo a1catrate da banda de estibordo, com o que tudo ficou raso com a água, de maneira que logo ali a pique se foi ao fundo, sem dela se salvar pessoa nenhuma, e varejando a muni

ção da roca por cima, deu no convés de outra lorcha que vinha um pouco mais atrás, e lhe matou o capitão e seis ou sete que estavam junto dele, do que as outras duas ficaram tão assombradas que querendo tornar a voltar para terra, se embaraçaram ambas nos guardins das velas de maneira que nenhuma delas se pôde mais desembaraçar, e assim presas uma na outra estiveram ambas estacadas sem poderem ir para trás nem para diante.

Vendo então os capitães das nossas duas lorchas (os quais se chamavam Gaspar de Oliveira e Vicente Morosa) o tempo disposto para efectuarem o desejo que traziam, e a inveja honrosa de que ambos se picavam, arremeteram juntamente a elas, e lançando-lhes muita soma de panelas de pólvora, se ateou o fogo em ambas, de maneira que assim juntas como estavam arderam até ao lume da água, com o que a maior parte da gente se lançou ao mar, e os nossos acabaram ali de matar a todos às zargunchadas, sem um só ficar vivo; e somente nestas três lorchas morreram passante de duzentas pessoas; e a outra que levava o capitão morto, tão-pouco pôde escapar, porque Quiay Panjão foi atrãs dela na sua champana, que era o batel do seu junco, e a foi tomar já pegada com terra, mas sem gente nenhuma, porque toda se lhe lançou ao mar, de que a maior parte se perdeu também nuns penedos que estavam junto da praia, com a qual vista os inimigos que ainda estavam nos juncos, que podiam ser até cento e cinquenta, e todos mouros lusóes, e bornéus, com alguma mistura de jaus, começaram a enfraquecer, de maneira que muitos começavam já a se lançar ao mar.

o perro do Coja Acém que até este tempo não era ainda conhecido, acudiu com muita pressa ao desmancho que via nos seus, armado com uma coura de lâminas de cetim carmesim franjada de ouro, que fora de portugueses, e bradando alto para que todos o ouvissem, disse por três vezes:

- Lah hilah hilah lah muhamd roçol halah, ó massoleimóes e homens justos da santa lei de Mafamede, como vos

deixais vencer assim por uma gente tão fraca como são estes cães, sem mais ânimo que de galinhas brancas e de mulheres barbadas? A eles, a eles, que certa temos a promessa do livro das flores, em que o profeta Noby abastou de deleites os daroeses da casa de Meca. Assim fará hoje a vós e a mim, se nos banharmos no sangue destes cafres sem lei!

Com as quais malditas palavras o Diabo os esforçou de maneira que fazendo-se todos num corpo, amoucos, tornaram a voltar tão esforçadamente que era espanto ver como se metiam nas nossas espadas.

António de Faria então bradando também aos seus, lhes disse:

- Ah, cristãos e senhores meus, se estes se esforçam na maldita seita do Diabo, esforcemo-nos nós em Cristo Nosso Senhor posto na Cruz por nós, que nos não há-de desamparar, por mais pecadores que sejamos, porque enfim somos seus, o que estes perros não são.

E arremetendo com este fervor e zelo da fé, ao Coja Acém,

como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu com ambas as mãos com uma espada que trazia, uma tão grande cutilada pela cabeça, que cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão, e tornando-lhe com outro revés lhe decepou ambas as pernas, de que se não pôde mais levantar, o qual sendo visto pelos seus, deram uma grande grita e arremetendo a António de Faria se igualaram com ele uns cinco ou seis com tanto ânimo e ousadia que nenhuma conta fizeram de trinta portugueses de que ele estava rodeado, e lhe deram duas cutiladas, com que o tiveram quase no chão, o que vendo os nossos, acudiram logo com muita pressa, e esforçando-os ali Nosso Senhor, o fizeram de maneira que em pouco mais de dois credos foram mortos, dos inimigos ali sobre o Coja Acém, quarenta e oito, e dos nossos catorze somente, de que só cinco foram portugueses, e os mais moços escravos muito bons cristãos e muito leais. Já neste tempo os que ficavam começaram a enfraquecer, e se foram retirando desordenadamente para os chapitéus da proa, com a tenção de se fazerem aí fortes, a que vinte soldados dos trinta que estavam no junco de Quiay Panjão, acudiram com muita pressa, e tomando-os de rosto antes que se assenhoreassem do que pretendiam, os apertaram de maneira que os fizeram lançar todos ao mar, com tamanho desatino que uns caíam por cima dos outros. Animados então os nossos com o nome de Cristo Nosso Senhor, por quem chamavam continuamente, e com a vitória que já conheciam, e com a muita honra que tinham ganho, os acabaram ali de matar e consumir a todos, sem ficarem deles mais que só cinco que tomaram vivos, os quais, depois de presos e atados de pés e mãos, e lançados em baixo na bomba para com tratos se lhes fazerem algumas perguntas, se degolaram às dentadas uns aos outros com receio da morte que se lhes podia dar. E estes também foram feitos em quartos pelos nossos moços e lançados ao mar, em companhia do perro do Coja Acém, seu capitão e caciz