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No comando da Frol de la Mar – nome posto em honra da nau de Afonso de Albuquerque que se afundara com todo o tesouro da conquista de Malaca – ia Lopo Vaz Vogado, capitão ordinário de viagem, que não sofria desobediências, por isso haviam sido pouco frequentes as rixas entre matalotes e soldados, causadas quer pela jogatina, quer por algum furto ou pela primazia do uso do forno, quando lhes permitiam cozinhar. De pronto dominadas, antes de causarem morte ou ferimentos graves, com os desordeiros postos a ferros ou condenados a penas de açoites, tinham servido de distracção à mesmice da viagem, porque as punições eram administradas com muita solenidade, na presença de todos os tripulantes e passageiros, estes últimos procurando disfarçar o mareio provocado pelo som dos tambores, dos silvos do látego e dos uivos dos condenados.

Fernão viera com comida e catre assegurados na segunda coberta, a dos oficiais, graças à influência do seu protector Francisco de Faria, a quem servira durante quatro anos, findos os quais o amo o fizera entrar para moço da câmara do Senhor D. Jorge – o Mestre da Ordem de Santiago e filho bastardo d’el-rei D. João II. Como a paga mal dava para se sustentar, passado ano e meio, anunciara-lhes a sua decisão de partir para o Oriente em busca de fortuna.

Francisco de Faria escrevera-lhe cartas de recomendação para Pêro de Faria, um parente há muito estabelecido em Goa, assim como para um fidalgo seu amigo que ia na mesma nau, pedindo-lhe para o tomar sob a sua protecção. Este falara com os oficiais, gabando-lhes as letras de Fernão e o seu bom engenho, conseguindo que o pusessem como ajudante do boticário e barbeiro, em vez de trabalhar com os matalotes nas rudes fainas do mar para pagar a sua passagem.

A longa travessia dos dois oceanos fora uma verdadeira escola das manhas de sobreviver a qualquer preço, ministradas por malfeitores e criminosos sem escrúpulos e aprendidas à própria custa pelos grumetes mais moços e inocentes ou por quem viajasse sozinho e não se soubesse defender. Por ser bom de peleja e gozar da protecção de gente de qualidade, Fernão nada sofrera, evitando todavia imiscuir-se nas contendas da vilanagem para defender alguma vítima mais fraca, mesmo que o coração o impelisse a fazê-lo, seguro de que se o tentasse já não veria o amanhecer, pois nessa mesma noite teria a garganta cortada e seria lançado ao mar, sem ninguém se dar conta da malfeitoria.

Quando no ano da morte d’el-rei D. Manuel, em mil quinhentos e vinte e um, o seu tio o levara da casa paterna, na pacata vila de Montemor-o-Velho, para o serviço de uma senhora fidalga de Lisboa, a fim de lhe dar melhor vida, a mudança fora tão súbita e brutal como se tivesse passado do jardim da inocência para a terra da perdição. Ninguém preparara o menino de dez anos para os jogos e intrigas da Babel cosmopolita, faustosa e corrupta, que era a capital do reino, onde por pouco não perdera a alma e a vida.

Ao embarcar para a Índia, se acaso guardava ainda alguns resquícios de inocência desses tempos de meninice e juventude ao serviço do Mestre de Santiago, perdera-os irremediavelmente durante a viagem, vendo como o comportamento dos que embarcavam em busca de fortuna se assemelhava mais ao das feras do que ao dos homens. A experiência, por outro lado, ensinara-lhe que não devia esperar ajuda de outrem, pois no Oriente cada um era por si, o que, seja dito em abono da verdade, não era muito diferente no reino.

À sua chegada, no dia cinco de Setembro, a Diu – onde as naus d’el-rei, Frol de la Mar, Galega e Santa Bárbara, tinham ido deixar homens de reforço na fortaleza ameaçada pelos turcos –, vendo a alegria e o caloroso acolhimento com que eram recebidos pelo capitão António da Silveira e pelos seus companheiros, Fernão experimentara uma sorte de epifania ao sentir que fazia parte desse pequeno punhado de homens, quase todos portugueses, a quem Deus concedera o privilégio de visitarem, antes de quaisquer outros europeus, aquelas remotas paragens para aí se estabelecerem.

Com surpresa constatara que os mercados do Ocidente não chegavam sequer aos calcanhares dos da Índia, tendo muito pouco para oferecer em troca da variedade e riqueza dos seus produtos, quer naturais quer manufacturados, que ele via expostos por toda a parte, como se aquele lado do mundo fosse um bazar inesgotável para os mercadores que ali vinham carregar os seus navios ou as suas cáfilas. Fernão sentiu crescer dentro de si a ânsia de descobrir as ilhas encobertas de que falavam os matalotes, cujas areias eram pó de ouro e as pedras pepitas; ou, na sua impossibilidade, buscar as fontes odoríficas das especiarias, essa cornucópia de fortunas feitas em pouco tempo e quase sem trabalho.

O capitão da fortaleza, António da Silveira e Meneses, era um fidalgo da casa real, filho de Nuno Martins da Silveira (senhor de Góis e mordomo-mor da rainha D. Catarina) e irmão mais novo de Luís da Silveira, o conde da Sortelha. Cavaleiro de grande coragem, servira já como capitão de Goa e de Ormuz, antes de lhe ser dada a capitania de Diu e era tão generoso e mãos-largas que dava mesa, à sua custa, a mais de quinhentos homens.

Os bons auspícios que Fernão tivera no início da viagem confirmaram-se, dezassete dias depois de ter posto o pé em terra, quando estava ainda sem saber o que fazer da sua vida no arraial de tendas onde se acolhiam os recém-chegados sem pouso nem protectores na terra. Um capitão seu amigo, que ia partir com duas fustas para o mar Roxo, desafiara-o a acompanhá-lo, alvoroçando-o com a promessa de andarem às presas nos barcos de Meca, cujo saque o haveria de enriquecer. Aceitara a oferta sem hesitação.

Afinal as fustas iam ao estreito de Bab-el-Mandeb, o Portão das Lágrimas – a única passagem do mar Roxo para o da Arábia, no oceano Índico –, com a missão secreta de espiar quão verdadeiros eram os rumores de terem os turcos construído uma poderosa armada que, comandada pelo formidável Hadim Soleimão Paxá, se preparava para correr com os portugueses dos mares da Índia. Levavam também uma carta de António da Silveira para o seu feitor Henrique Barbosa que estava há mais de três anos em Arquico, no misterioso reino do Preste João, à espera de que o fossem buscar e aos quarenta portugueses que haviam escapado do assalto do rei de Zeila, Ahmed al-Ghazi, o Granhe ou o Canhoto, que capturara D. Manuel de Meneses juntamente com cento e sessenta dos seus homens.

Aprendera à sua custa que naquelas partes não se devia viajar contra as monções, porque as duas embarcações que seguiam juntas – em conserva, na linguagem dos matalotes – para melhor se protegerem de ataques inimigos, foram duramente fustigadas por ventos, chuvas e vagas temerosas, a ponto de crer que a sorte mais uma vez o abandonara e se iria perder naquela navegação. Porém, uma mudança dos ventos empurrara-os para a ilha de Çacotorá3, onde haviam feito a aguada e ele conhecera alguns cristãos descendentes dos primeiros convertidos pelo apóstolo S. Tomé, dos quais ouvira falar no reino sem todavia lhes dar crédito, tendo-os por uma das muitas lendas fabulosas que corriam sobre o Oriente.

Pouco depois de terem largado da ilha, sucedera uma coisa nunca vista, que só podia ser milagre, senão de Deus, pelo menos da natureza. Passavam dois relógios do quarto da modorra4, quando surgiram no céu umas barras de luz muito compridas, que saíam do horizonte, uma das quais parecia cingir todo o hemisfério e do seu pé partia uma segunda, atravessada; outras duas listas vinham juntar-se no zénite e da lua, que ficava entre estas e a mais comprida, saía nova barra de luz que ia também acabar na grande. Nunca ninguém, nas duas fustas, vira tal mostra no céu e os homens olhavam com pasmo, persignando-se para esconjurar o medo5.

Fernão tomara o encontro com aqueles antiquíssimos cristãos e o aparecimento do estranho fenómeno por bons presságios ou sinais da Divina Providência, como preparação para esta outra maravilha que o aguardava ali, ao alcance dos olhos: ia pisar a terra do Preste João, o Grande Abexim, o misterioso imperador que Pêro da Covilhã, um espião de D. João II, tinha descoberto e revelado às nações da Europa que o andavam buscando há mais de duzentos anos. Nestas circunstâncias Deus estava seguramente do lado dos portugueses e por isso ele não temera pela sua vida.