O mouro, como sempre, dissimulava a sua perfídia, para ganhar tempo, enquanto mandava tapar as bocas das ruas que vinham dar à praia, porque a cidade não tinha muralhas, fazendo em todas elas tranqueiras de entulho, com andaimes por dentro para a sua gente pelejar e por fora abriu minas e covas com muitos estrepes para os nossos, como fizera na praia. Albuquerque hesitava em atacar; a nossa gente de armas não passava de mil e duzentos portugueses e duzentos malabares.
Os capitães chins, não vendo conclusão na conquista, vieram à Frol de la Mar pedir ao governador licença para partir.
– Se não formos agora, Alto Senhor, perderemos a monção – falou o capitão Pulata, delegado de todas as suas demandas – e teremos de esperar meses até podermos navegar sem perigo. Com este estado de guerra na cidade, não se consegue comprar quaisquer mantimentos, já nem temos arroz bastante para comer durante a viagem!
– Ide-vos muito embora – disse-lhes o governador, entregando-lhes presentes de despedida. – Lembrai-vos de que me haveis prometido volver aqui com as vossas mercadorias para fazerdes tratos connosco.
– Sendo vós senhores de Malaca, eu vos juro que virão muito mais juncos nossos, com riquezas que vos hão-de espantar.
Albuquerque mandou o feitor da armada dar-lhe arroz com abastança e consentiu que levassem a carga de pimenta que tinham nos seus juncos, embora fosse mercadoria de mouros e só aos mercadores gentios deixasse fazer tratos. Entregou-lhes uma carta para o rei da China e outra para o do Sião, aonde o capitão Pulata ia aferrar na sua cabotagem, enviando com eles, por emissário, um dos companheiros de Rui de Araújo que sabia a língua, a fim de dizer ao rei que queria ter paz com o seu reino, podendo ele enviar gente dos seus portos a povoar Malaca que estava despejada de mouros seus inimigos. Feitas as despedidas, os chins partiram muito satisfeitos com o governador e tendo os portugueses em alta estima.
Ficou reunido o conselho dos capitães os quais fizeram eco das palavras dos chins, dizendo que aquela conquista estava a ser uma empresa muito trabalhosa, assaz demorada; a monção estava a chegar e, como eles haviam dito, ou partiam para Goa ou ficariam presos no porto à mercê d’el-rei de Malaca.
– Tendes de pôr fogo à cidade, meu senhor – aconselhou-o Rui de Araújo –, de contrário só com muito trabalho e grande perda dos nossos, lograreis tomá-la. ou não.
– Se abrasarmos a cidade – contrariou Albuquerque –, toda a sua riqueza se consumirá e a nossa gente terá todo o trabalho sem o proveito do saque.
– Senhor, ainda que se queime Malaca, o melhor dela quedará, pois a sua mor riqueza está dentro dos gudões, umas casas de pedra fortes, em parte feitas debaixo do chão, com tais amparos nas portas que, embora tudo se faça em brasas, o que tiverem dentro não sofrerá qualquer dano.
– Se assi é, Rui de Araújo, estamos conversados! – decidiu o governador. – Amigos, fazei prestes as vossas gentes que vamos conquistar Malaca pela segunda vez e, tal como fizemos em Goa, não abriremos mão dela.
Como a experiência é mãe de todos os saberes, Albuquerque estava determinado a não cometer os erros do primeiro assalto e a dar conclusão àquela conquista, apesar da diferença de número. Apressou-se a enviar ordens aos ferreiros de assentarem as suas forjas para consertarem as armas danificadas ou fazerem novas; ao feitor da armada mandou recolher machados, enxadas e picões para encher pipas de terra e fazer estâncias na ponte, quando tomássemos de novo posse dela, com mantas para as cobrir, a fim de nos servirem de amparo contra os tiros das bombardas inimigas.
Sexta-feira, dez de Agosto, duas horas da antemanhã, desembarcámos da banda da mesquita todos num só corpo, em vez dos dois da primeira arremetida, saudados por estrondosas salvas de artilharia. Repartidas as capitânias conforme fora determinado, com grande grita, estrugido de trombetas e brados de “Santiago, Santiago!”, a que os mouros respondiam com igual arruído tangendo os seus instrumentos de guerra, que foi coisa espantosa de se ouvir. O capelão Álvaro Mergulhão fez uma cruz com a haste de um pique e, pregando-lhe um papel com a imagem do crucifixo, ergueu-a ao alto como a abençoar-nos e nós lançámo-nos com os nossos capitães ao assalto das tranqueiras, sob uma chuva de tiros, como se em cada pau estivessem duas bombardas e em cada bombarda cinco espingardões.
Pelo mar avançava contra a ponte o junco de António de Abreu, que parecia uma torre, com arribadas e seteiras, artilharia à proa e dos lados, contudo os pelouros de chumbo do inimigo eram grossos e passavam ambos os costados, ferindo muita gente. Um tiro de espingardão apanhou o capitão Abreu em cheio nas queixadas, arrancando-lhe parte dos dentes, mas ele não consentiu que o levassem às naus para o curarem, mantendo-se no seu posto. – Posso estar sem forças para pelejar e sem língua para mandar, mas inda me fica vida para não perder o lugar em que fui posto, articulou a custo para Alpoim que fora enviado para o render.
O governador vinha num batel pegado com o junco, trazendo como reforço a galé e a caravela latina que, sendo mais fáceis de manobrar, causavam assaz de estragos aos nossos inimigos. Enquanto os marinheiros lutavam por afastar as jangadas de fogo que os mouros lançavam no rio contra o junco, para o abrasarem, os nossos lanceiros atiravam do cesto da gávea muitos artifícios de fogo e pedras contra a ponte até que a abalroaram com medonho estrondo e destruição. Pasmados com tal obra, os inimigos já não atinavam com o que fazer, divididos entre defender a ponte dos que iam no junco ou impedir a desembarcação de Afonso de Albuquerque. Com a entrada do junco, o governador ficou senhor da ponte, impedindo a gente de Upi, a maior povoação de Malaca, de se comunicar com a povoação d’el-rei, dividindo-lhe assim as gentes.
– E os mouros não vos apertaram entre essas duas forças? – interrompe Gaspar de Meireles, maravilhado.
– Para mais, sendo eles tantos e vós tão poucos e em terra estranha.
Calvo aproveita a interrupção para tomar as rédeas da narrativa:
– António de Abreu, depois de abalroar a ponte, ficou senhor dela, porque os inimigos fugiram temerosos das armas que o junco trazia à proa. Albuquerque mandou os homens da sua ordenança desfazer as tranqueiras, arrancar os paus e estacadas, derrubar os valados com muitas enxadas, que para isso trouxera, abrindo as ruas que el-rei de Malaca fechara com tanto trabalho. Fez construir um reparo em volta de toda a boca da ponte, com uma serventia que vinha dar ao rio e lhe assegurava o serviço de mar; concertou igual protecção na outra entrada da ponte, com batéis grandes em frente a varejarem o rio para os mouros não virem pela água assaltar e ferir os que guardavam as tranqueiras.
Vendo como a nossa gente sofria com o fogo, não só do sol que os abrasava como das frechas que voavam dos terraços das casas vizinhas, ordenou que trouxessem as velas das naus para toldar as estâncias, com o que deu vida a todos143. Depois, deixou-se ficar quedo, com a bandeira real ao alto, tendo junto de si Álvaro Mergulhão com a sua cruz, enquanto Fernão de Lemos tomava a estância de uma rua que vinha ter à ponte e Dinis Fernandes, Jorge Nunes de Lião, Nuno Vaz de Castelo Branco e outros foram com as suas capitânias expulsar os mouros da mesquita.
Albuquerque ansiava por novas de D. João de Lima e dos seus capitães no assalto à tranqueira da banda da mesquita onde, como da primeira vez, se achava o rei com o príncipe seu filho. Apesar de já não terem com eles o rei de Pão para lhes dar ânimo – porque este, assustado pelo nosso primeiro assalto, voltara para o seu reino com a filha, dando ao demo o casamento –, traziam muita gente e elefantes, de modo que nós estávamos a ter trabalhos dobrados. Da ponte, o governador apercebendo-se do nosso aperto, acudiu com toda a sua gente a proteger-nos as costas dos mouros que nos atacavam, vindos da rua principal que ligava a ponte à mesquita.
Vendo a sua gente metida entre dois fogos, Mahamed desamparou as tranqueiras, pondo-se em fuga com os cerca de três mil homens que lhe restavam. Albuquerque deixou de guarda à mesquita os capitães que a tinham conquistado e foi com os seus homens aquartelar-se na ponte para, juntamente com António de Abreu, dirigir os trabalhos de construção de duas tranqueiras fortificadas nos cabos dela, com as pipas cheias de terra, protegidos pela artilharia das duas barcas, que varejavam as costas com tiros cruzados.