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Enquanto se faziam as tranqueiras, dos telhados das casas os mouros continuavam a disparar tiros de espingardões ou de artilharia que feriam a nossa gente e o governador enviou Gaspar de Paiva com cem homens pôr fogo à cidade do lado da povoação dos mouros e Simão Martins com outra centena a queimar as casas d’el-rei, para lá da mesquita. Mandou também os irmãos Andrada, Pêro de Alpoim, António de Abreu, D. João de Lima, com outros capitães cujos nomes me não lembram, que fossem com as suas capitanias divididas em duas partes percorrer a cidade a dar a morte a tudo o que tivesse vida.

Mal entraram na cidade, os capitães acharam alguma resistência que venceram sem custo e continuaram a percorrer as ruas, matando toda a gente miúda que topavam pelo caminho, sem poupar a vida a ninguém. Os que se deitavam ao mar, cuidando salvar-se, caíam sob os golpes dos nossos matalotes que andavam nos esquifes a pescá-los. Ainda não tínhamos terminado os trabalhos nas tranqueiras e já o fogo, alastrando dos dois lados com o vento forte, consumia grande parte da cidade.

Com a chegada da noite, a nossa gente recolheu-se, exausta, para comer e dormir em segurança, nos barcos ou nas estâncias que tínhamos fortificado, fazendo quartos de vigia toda a noite, apesar do cansaço, a espaços varejando as ruas e o rio com tiros de peças grossas, para impedir os mouros de construírem novas tranqueiras, queimarem os nossos navios ou matarem-nos durante o sono.

Antes de regressar às estâncias da ponte, onde iria passar a noite, o governador foi visitar o junco que servia de hospital. Sofreu um rude golpe quando viu tantos dos seus capitães feridos, pela muita falta que lhe fariam se intentasse o assalto à povoação onde vivia o rei, aprazado para a manhã seguinte, o que já não poderia ser feito.

– E ainda bem que se não fez – interrompe-o Calvo, com um brado –, pois se tivéssemos entrado de roldão e esbarrondado pela cidade, nesse segundo dia, o resultado teria sido seguramente funesto e hoje talvez Malaca não fosse nossa! Valeram-nos os dez dias que Afonso de Albuquerque gastou a conquistar a cidade, avançando aos poucos, tomando posições, fortalecendo-nos nelas, enquanto íamos matando todo o mouro, malaio ou jau que topávamos pela frente, fosse homem, mulher ou criança, velho ou novo, para que não viesse a cometer traição.

Vicente lembra-lhe, rindo-se:

– O que atacavam as estâncias em que nos aquartelávamos ou nos faziam resistência nas ruas, porque a fome os impelia a assaltar os gudões do arroz, recebiam tanto dano que aos poucos foram esmorecendo o ânimo. Tinham sido também abandonados pelos mercadores e gente estrangeira que vieram pedir seguro ao governador, conforme ele mandara apregoar que lhes daria, assim como aos malaios que, dali em diante, quisessem dar obediência aos portugueses.

– Mahamed não se rendeu! Como foi que o deixaram fugir?

– Sua Alteza adiantou-se-nos – ri-se Calvo. – Avisado por algum espia, não quis esperar que fôssemos acometer a povoação do outeiro onde a família real, os nobres e a gente principal de Malaca tinham as suas casas. Perdera a cidade, mas não iria deixar que lhe tomássemos o seu tesouro, o qual mandou carregar nos alifantes durante a noite e, ao nascer do dia, partiu com o príncipe, os capitães que haviam escapado da batalha, os seus mandarins com as respectivas famílias, a caminho do sertão aonde montaria o seu arraial, à espera de melhores tempos. Acreditava que desejávamos somente roubar a cidade e, terminado o saque, partiríamos com a monção. Então, ele retomaria o seu reino.

– Albuquerque mal teve rascunho da sua fuga, foi-lhe logo no encalço, mandando os capitães com a sua gente na dianteira, porém, quando subimos ao outeiro, já o cortejo dos fugitivos ia tão longe que não o podíamos alcançar. Foi tanta a nossa sanha de os ver fugir que deitámos fogo às casas d’el-rei, do príncipe e dos seus mandarins. Faríamos o mesmo a toda a cidade, se não fosse o defeso do governador e o medo dos castigos com que nos ameaçava, para que se não consumissem as suas riquezas. A fim de nos consolar e premiar pelo que todos tínhamos sofrido com aquela conquista, consentiu a todos que saqueassem a cidade à escala franca, com excepção das casas e fazendas de Nina Chetu e dos demais mercadores gentios de Malaca.

– Fiquemos por aqui, amigo Vicente, pois arrebatámo-nos com as recordações dos nossos feitos e fomos prolixos em demasia, massacrando os nossos pacientes ouvintes com todas as minudências deste sucesso.

– Juro que me quedaria toda a noite a ouvir-vos! – protesta Fernão.

– A Fortuna bafejou-vos! Ficastes ricos – troveja o coro dos proscritos.

– Sem dúvida! Todos enriqueceram, contudo aqueles que embarcaram na Frol de la Mar de Afonso de Albuquerque perderam tudo, muitos deles a vida, no naufrágio da nau, junto a Samatra. O governador salvou-se numa jangada, resgatando do mar apenas uma menina, filha de uma escrava sua, que ele teve nos braços até ser recolhido. Mas isso são outras histórias que só conhecemos de ouvir contar.

A Frol de la Mar! Nos confins da China um bando de portugueses cativos ouvia os testemunhos vivos dos heróis que haviam participado nas primeiras conquistas e viagens de descobrir que deram a Portugal um império na Índia. Contavam factos, falavam de nomes que ilustravam partes obscuras nas buscas e inquirições que Fernão fizera em Samatra, por isso ardia de impaciência para esclarecer a dúvida que lhe martelava a cabeça, trazendo-lhe à memória uma outra conversa que tivera com Pêro de Faria, precisamente em Malaca, no ano de trinta e nove.

– Esse António de Abreu e Francisco Serrão – pergunta, já de pé, pronto para sair – são os mesmos que Afonso de Albuquerque enviou com uma armada em busca da Ilha do Ouro.

– Foram eles, sem dúvida, com Simão Afonso Bisagudo! O governador que estava prestes partir de Malaca, enviou-os a Java e às Molucas, para anunciarem a conquista e concertar pazes com os seus reis, contudo murmurava-se que ele os mandara descobrir a Ilha do Ouro.

– E descobriram-na? – pergunta Borralho.

– Se a descobriram, calaram-se muito bem calados. Falou-se muito dessa viagem, logo seguida de outras, a cada ano.

– Falareis delas outro dia, que já é tarde! – corta Vicente. – Temos agora de tomar ainda mores precauções porque as patrulhas da guarda acham toda a gente suspeita e atiram a matar.

142 Comentários do Grande Afonso de Albuquerque, parte III, de Brás de Albuquerque. O Papa ordenou uma procissão soleníssima e disse missa pontifical, em honra do grande feito português.

143 Da Segunda Década da Ásia, livro sexto, de João de Barros.

XXII

Se és paciente num momento de ira, escaparás a cem dias de tristeza

(chinês)

Do Tratado em que se contam muito por extenso as cousas da China:

Além destes Mogores, correm ao longo da China os Tártaros que é mui grande reino e de muita e inumerável gente. É esta gente vermelha comumumente e não alva, andam nus da cinta para cima, comem carne crua e untam os corpos com o sangue dela, pelo qual comummente são fedorentos e têm mau cheiro. Afirmou-me um china velho que algumas vezes quando eles vinham contra as terras da China, se o vento vinha da parte donde eles vinham, que eram sentidos pelo cheiro; quando vão à guerra levam a carne crua debaixo de si para comerem, comem-na desta maneira e untam-se com o sangue para se fazerem mais fortes e robustos e se provocarem na guerra a crueldade. Pelejam também estes a cavalo com arcos e frechas, e usam de treçados, com estes é contínua a guerra dos Chinas.

Têm os Chinas cem léguas (dizendo outros que serão mais) de muro antre si e eles, onde há sempre guarnições de gente para defesa das entradas dos Tártaros.