(De Frei Gaspar da Cruz para El-Rei D. Sebastião, 1569)
Os portugueses, mesmo os naturais do interior das terras nortenhas, tinham sofrido muito em Quansy com os rigores do frio, trazido pelos grandes nevões que tudo cobriam, deixando apenas à vista alguns troços da muralha. Era uma neve miúda, tão espessa que parecia nevoeiro, impedindo-os de se verem uns aos outros, acompanhada de um vento frio que soprava de rijo, trespassando-lhes os andrajos e as carnes, enregelando-os até aos ossos. Com muito custo caminhavam através do manto branco que em certos sítios lhes chegava aos ombros e peitos, enterrando-se a cada passo, cujo esforço para se libertar os deixava exaustos, banhados de suores frios e a tremer de febre.
Quando a neve endurecia, toda a terra se transformava numa superfície gelada, escorregadia como uma lousa untada, não lhes restava outro remédio senão deitarem-se de bruços e deslizarem com o corpo como se nadassem, durante largos troços do caminho. Deixavam de sentir os pés, mãos e rosto, com o rigor do frio. Joaquim Pereira e Álvaro de Melo por pouco não morreram, quando os pés lhes incharam e apodreceram. Salvou-os Fernão, que aprendera a tratar do escorbuto e lhos queimou com brasas vivas e ferros incandescentes.
Esmorecida a curiosidade pelos folangji, eram raros os convites dos senhores para ouvirem as suas histórias e o trabalho escasseava, disputado pelos chins prisioneiros ou livres, que também viviam miseravelmente naquela região fronteiriça, assolada há mais de um lustro por secas, tempestades de areia e pragas de gafanhotos, que arrastavam atrás de si a fome e as febres. Saíam todos os dias em busca de trabalho, sujeitando-se às tarefas mais humildes, menos os que presumiam de mais honrados e preferiam esmolar pela cidade a fazerem trabalhos que, segundo afirmavam, os rebaixavam por serem indignos da sua fidalga condição.
Após as primeiras visitas do bando, Calvo deixara de os convidar e receber em sua casa, cansado das suas contínuas disputas, a que nem as ameaças de castigo do chaem, nem as juras feitas sobre a cruz haviam posto fim, antes pareciam exacerbar-se com os rigores e maleitas do Inverno que os obrigavam a passar mais tempo juntos. Kexin queixara-se de que eles estavam sob a influência de Lang, a estrela dos brigões, mas o marido sabia que a verdadeira razão era o seu temor de que algo de nefasto pudesse acontecer a Meng ou a Lijie.
Só Vicente, Fernão e Cristóvão eram bem-vindos, estimados como parentes, um por ter sido companheiro de armas de Calvo e os outros dois pela sua boa índole, trato agradável, além de saberem falar a língua quase tão bem como o seu anfitrião. Quando as neves começaram a derreter com a chegada da Primavera, para não sobrecarregarem a família, em paga do bom acolhimento, os três companheiros só aceitavam a hospitalidade da sua mesa em troca de serviços, como ir buscar uma carga de lenha, vender ao mercado os produtos da horta e do galinheiro ou os bordados de Kexin e das filhas.
Para Vicente era evidente o fascínio que Ana-Meng e Isabel-Lijie causavam respectivamente em Fernão e Borralho, parecendo-lhe também que as atenções dos dois companheiros não caíam em saco roto, porque as duas moças mostravam grande prazer na sua companhia, ruborizando-se e rindo muito com os seus galanteios, aceitando encantadas os pequenos presentes que eles lhes traziam. Não era a primeira vez que lhes fazia alusões aos amorios ou lhes lançava alguns chistes brejeiros, mas, nesse dia, decide representar o papel de alcoviteiro e falar-lhes a sério do futuro.
– Com a pena agravada em degredo perpétuo e sendo Quansy tão longe do mar – começa, procurando disfarçar a amargura –, estamos condenados a viver aqui para sempre. Eu já não tenho muito a esperar do futuro, mas vós deveis pedir a Calvo que vos dê as filhas em casamento, para refazerdes as vossas vidas.
A caminho da casa do português, carregados com feixes de lenha, os dois amigos quase largam a carga, ao estacarem de golpe, aturdidos.
– Não mais volver a Portugal? Quereis tirar-nos a esperança que nos mantém vivos? – a voz de Borralho soa como um soluço.
– Se fosse possível a fuga, Calvo não estaria aqui hoje. Ou crês que ele não o tentou?
– Penso nisso muitas vezes – concorda Fernão, com desânimo. – Só um milagre nos poderia tirar daqui e creio que Deus nos abandonou.
– Com os nossos companheiros, sempre engalfinhados uns nos outros, em constantes quezílias e contendas, não há milagre que nos salve. Tendes de vos apartar do resto do bando, antes que seja demasiado tarde. O melhor que podereis fazer é desposar as moças.
– Desposá-las? Mesmo que elas quisessem casar connosco, que temos nós para lhes oferecer? – protesta Borralho, com a imagem do doce rosto de Lijie a encher-lhe a alma.
– Mal ganhamos para comer. Não temos onde cair mortos! – reforça Fernão. – Os pais jamais darão o seu consentimento.
– Eles têm-vos amizade e não duvido de que hão-de preferir para genros dois cristãos, para mais portugueses honrados, a quaisquer chins idólatras, embora mais ricos, que as possam pretender, cousa difícil de acaecer com gente tão avessa aos estrangeiros. Calvo sabe isso, ciente de que podeis ajudá-lo no seu negócio e a proteger a família de perigos como os assaltos dos tártaros. Ele já não é novo, tem duas filhas, moças formosas, e dois filhos pequenos. Sabeis o que os espera.
Meng e Lijie seriam presas de escol para os bárbaros tártaros, a sua beleza e juventude talvez lhes salvassem a vida, mas não as poupariam à escravatura dos seus haréns. Fernão conhecia bem a reputação destes cavaleiros da estepe, verdadeiros demónios saídos do Tártaro, as regiões infernais. No Antigo Testamento estas hordas crudelíssimas e impiedosas de archeiros encarnavam a profecia do Apocalipse, vivendo nas terras encobertas de Gog e Magog, à espera do sinal de Deus para lançarem os seus cavalos a galope sobre a terra, como um furacão, destruindo tudo na sua frente.
Contava-se ainda, sobre estes diabos vermelhos, que Alexandre da Macedónia os perseguira sem tréguas, empurrando-os até aos confins mais sombrios das terras do norte, forçando-os a refugiarem-se dentro de montanhas acessíveis apenas por uma passagem que o magno conquistador selara com uma porta de ferro. Fernão sabia que essas montanhas não eram senão as que agora se achavam ligadas pela Grande Muralha, só não estava seguro de serem elas mais fortes do que a mágica porta de Alexandre para suster o ataque das hordas.
No ano anterior, Altan Khan tinha enviado emissários à fronteira de Datong, a pedir que lhe fossem concedidos privilégios comerciais para trocar os seus cavalos e ovelhas por cereais e tecidos. O imperador recusara e os tártaros, ameaçados pela seca e pela fome que grassava nas suas terras, assaltaram e pilharam inúmeras povoações na raia de Shanxi. Com a Primavera e o degelo, regressara o alarme da presença do ancestral inimigo junto à fronteira, a preparar-se para um assalto em maior força a Quansy. Era constante a comunicação das sentinelas nas torres de vigia da muralha, com bandeiras coloridas ou sinais de fogo, segundo a gravidade da ameaça.
A população tornava-se mais inquieta, a soldadesca, reforçada por novos contingentes, mostrava-se dia a dia mais desconfiada e brutal, vendo um inimigo a cada esquina, prendendo quem ousava andar de noite pelas ruas. Os bonzos e os adivinhos profetizavam desgraça, anunciando que Mercúrio, o astro que regia os bárbaros, aparecera no céu com uma cor vermelha, sinal de que fariam guerra iminente e levariam a vantagem sobre os defensores da cidade. O mau augúrio era reforçado pela presença de Vénus, protectora das hordas que se regulavam por ela, lançando-se ao ataque dos povoados ou cidades quando ela brilhava e retirando-se quando ela empalidecia. Apesar do medo, a população confiava na Changcheng, a Grande Muralha, para a protecção de Quansy e dos seus habitantes contra os ataques dos tártaros, e prosseguia na sua faina de todos os dias.